sábado, 25 de outubro de 2008

Payos, Paillos e Senhores


As pessoas comunicam e o mundo avança. Esta ideia tem sido escrita noutras histórias. E vou repetir-me e repetir-me… Intencionalmente. Quando partimos à descoberta do Outro Diferente, criamos espaços comuns de entendimentos, de diálogos. A rede de afectos constrói-se, as barreiras caem, as pessoas aumentam e o mundo avança… Araquerar… Conversar, falar…

As formas que temos para comunicar uns com os outros são muitas e diversas. Temos a linguagem verbal, oral ou escrita, onde o código utilizado é a palavra. E com as palavras dizemos o que sentimos, o que pensamos. Como eu estou a fazer agora. A partilhar uma ideia, a procurar entendimentos com vocês, aí desse lado.

E temos a linguagem não verbal, onde os códigos podem ser o desenho, os sons, a dança, a expressão corporal. Se me inclino para vocês, estou a ouvir-vos, se franzo o sobrolho, o assunto é de evitar, se abro os olhos… Bem, o melhor é fugir!!!

Utilizamos os códigos, verbais e não verbais, em contextos específicos, formais, académicos, sociais, afectivos. Porque os códigos legitimam, igualizam ou relacionam afectivamente um determinado grupo de pessoas, comunidade ou país. Porque são uma forma de definir ou de dar identidade a um grupo. É o caso das culturas urbanas, por exemplo. Io bro! Tá-se!

A Linguística interessa-me mas o meu conhecimento sobre ela é limitado e, por isso, fico-me por aqui. É através desta ciência que sabemos que o Povo Cigano tem a sua origem no norte da Índia. E é através do estudo da Língua que supomos o seu percurso pela Europa e pelo resto do mundo. Pela língua. Pela comunicação…

Supomos que terão imigrado por volta dos séculos X e XI e que a sua rota mais provável tenha sido da Índia para a zona da Antiga Pérsia. Os escassos registos históricos que existem situam os ciganos no Irão, Iraque ou Egipto. Daí terão seguido para os Balcãs. Terão chegado à Península Ibérica por volta do século XV.

O primeiro documento da entrada dos ciganos em Espanha, diz que se designavam a eles próprios como “ruma calk”, que significa “homem dos tempos”. Com eles trouxeram a música, as palmas, a batida dos pés, as palavras “felco” e “mengu”, que significarão “camponês” e “fugitivo”. Flamenco!

E sabemos isto porque o romani, a Língua dos ciganos, tem semelhanças com o sânscrito e o páli, línguas utilizadas na Índia. Acresce a questão das tradições. O sistema de castas indiano apresenta semelhanças com a vivência em comunidades familiares pelos ciganos.

Quando comecei a pensar na forma virtual de apresentar este Caderno, decidi seleccionar algumas das palavras do Léxico Romanon-Calon, elaborado pelo Nómada, e divulgá-las. Pensei que seria talvez um esforço em vão porque poucas pessoas, para além dos académicos da Linguística, se interessariam por estas coisas. E então lembrei-me de transformar as tradicionais “etiquetas” em “Palavras Mágicas” e utilizar a Língua dos Ciganos nas histórias. Seria uma tentativa para tornar o Léxico num instrumento dinâmico, uma fonte de comunicação entre mim e vocês.

Os ciganos não gostam que os não ciganos entendam o romani. Porque é uma linguagem própria e exclusiva, que lhes permite manterem-se unidos, vivos e com as suas tradições preservadas. Estamos a falar de uma comunidade que tem inscrita na sua História séculos de perseguições, forçados a caminhar de território em território, para garantirem a sua sobrevivência. E esta comunidade sobreviveu porque se fechou. E o romani é um código que lhes dá uma Identidade.

Eu sabia isto mas insisti em divulgar o romanon-calon. Chamei-lhe “Palavras Mágicas” e não foi por acaso. Tal como o “Abre-te Sésamo” do Ali Babá o cobriu de tesouros, descodificarmos o romani abre o caminho da comunicação, do entendimento. Constrói afectos. Destrói barreiras. Aumentamos. E o mundo avança…

Não é fácil descodificar o romani. Dependendo da zona geográfica onde se estabeleceram, os diferentes grupos ciganos assimilaram os costumes e tradições dos locais. E isto reflecte-se na linguagem. Na Península Ibérica, falamos de romanon-calon ou romani-caló…

E por serem uma cultura ágrafa, sem forma escrita, a História dos Ciganos é transmitida oralmente, de pais para filhos. Os conhecimentos, as tradições, a Língua, passados de geração em geração, e, simultaneamente, a História a adaptar-se ao local. E por isso encontramos diferentes maneiras de representar a mesma palavra. Quando dizemos payos, paillos, pailhos, senhores, gadjé, estamos sempre a falar dos “não ciganos”, brancos. Para os "não ciganos" negros temos a palavra “calhardon”, que também significa “café”.

E por tudo isto, não desisti de colocar o Léxico no Caderno. Porque o romani faz parte da História de um Povo, da sua memória colectiva, que deve ser preservada, estudada, divulgada. Porque também serve para nos entendermos e comunicarmos.

E percebi que editar o Léxico, as Palavras Mágicas, não tinha sido um esforço em vão, quando um destes dias um amigo, para me dizer que ia ao dentista, me escreve a seguinte mensagem:

Bom… Vou narrar-me. O senhor doutor vai ficar barbaló e eu chororó. Asi es la pacha! Zuenos! Hasta Mañana!


A inspiração ou Duende para esta história nasceu da comunicação com um amigo, ainda mais cromo que eu, que suspeito não seja deste planeta… Foi em código, para só ele perceber… ;)

E para os mais curiosos, deixo aqui alguns links onde poderão aprender muitas coisas interessantes sobre a História do Povo Cigano. E fica a promessa (mais uma!) de voltar a este tema numa outra história… E para os mais desconfiados, as promessas estão a ser anotadas no meu Caderno de papel…


http://www.unionromani.org/pueblo_es.htm

http://iceweb.org/cadernos_ice5.html

http://iceweb.org/cadernos_ice9.html

http://www.agencia.ecclesia.pt/pub/33/noticia.asp?jornalid=33&noticiaid=59514

http://dancasdomundo.no.sapo.pt/dcigana.htm


4 comentários:

Anónimo disse...

loA força da palavra
Esta importância dada à palavra, ao dito oral mais do que ao dito escrito, nos povos cuja História se inscreve na oralidade (tal como os nativos da Austrália, tão bem contado no livro de Bruce Chatwin “Canto Nómada", remete-nos para o papel central da “palavra dada”, da “palavra de honra”, da responsabilidade individual e colectiva do compromisso social que o ser humano e as comunidades lhe atribuem enquanto factor estruturante da identidade individual e colectiva.
Essa importância, aprendi-a com os meus pais quando me ensinaram a não ocultar as asneiras que fazia e em assumir as minhas responsabilidades quando as fazia.
Essa importância aprendi-a quando prometia ao meu filho que lhe contava uma história antes de ele adormecer.
Essa importância estruturante da palavra dada, da palavra dita, reencontrei-a quando aprendi a conhecer as crianças e famílias ciganas com quem trabalhei e tive a oportunidade de conviver.
A palavra dada, a palavra solta, a palavra formulada e carregada da emoção que o momento requeria era muito mais eficaz do que qualquer escrito na construção de pontes ou de barreiras. Porque essa palavra é acompanhada de vibração e tonicidade que transpiram do nosso corpo. Essa linguagem corporal que não consegue disfarçar os nossos sentimentos, por muito “civilizados”, “educados”, controlados e contidos que sejamos…
Já o povo dizia que “palavra fora da boca é como pedras fora da mão”, ou seja, a palavra também pode ser muito violenta ou pouco sensata, e uma vez dita, está dita e já nada a faz voltar atrás.
Um dos fascínios que ainda sinto ao conviver com pessoas ciganas, (em colectivo mais do que individualmente é que esta situação se coloca), é perceber que o contexto produz palavras só aparentemente iguais… É sempre um desafio perceber que a mesma palavra dita num colectivo em que pode mudar apenas uma pessoa pode ter outro significado, por vezes até contrário àquele com que foi pronunciado.
Ter uma história inscrita na oralidade é, hoje em dia, um desafio, um fascínio, um potencial em vias de extinção…
Agora, é preciso saber ler até nas entrelinhas, nas letras pequeninas que estão nos contratos e passam despercebidas.
Hoje é preciso dominar a escrita para não sermos enganados…
Como seria tudo mais fácil se pudéssemos voltar ao tempo do valor da palavra dada!

La Payita disse...

A propósito do teu comentário, lembrei-me de uma história, que estava esquecida. Já foi anotada no Caderno de papel. Fica para outra altura.

Mas de facto é das primeiras aprendizagens que fazemos com os ciganos. Não interessa quantos papéis lhes mostramos... O que importa verdadeiramente, é o que lhe dizemos e como dizemos! A palavra de honra!

É o contrário daquele nosso provérbio: "Palavras leva-as o vento". Com esta comunidade é mais "Papelis, leva-os o vento!" ;)

Anónimo disse...

Curiosa, esta extrema necessidade que os seres humanos têm de comunicar. Uma necessidade tão grande que chega a levar alguns indivíduos a criar amigos imaginários ou a desdobrar a sua personalidade. Bem sei que são distúrbios da mente. Mas que se traduzem em quê? Precisamente na necessidade de comunicar com alguém!
Todos sabemos que, por definição, o Homem é um animal social (e eu arrisco a acrescentar) que só se completa na interacção/relação que estabelece como o outro. E essa relação é estabelecida, definida e firmada pela linguagem, seja pelo que é dito, seja pelo que não sendo dito, por vezes, tem tanta ou mais importância do que se fosse verbalizado.
Mesmo tratando-se do eremita asceta, ou do monge que fez voto de silêncio, contrariamente ao que nos possa parecer, não estão a abdicar da comunicação, nem deixam de passar uma mensagem a todos aqueles que o rodeiam, expresso nesse acto simbólico. Apenas estão a usar outro tipo de linguagem e a manter outro tipo de comunicação.
Aliada à necessidade de interacção, o Homem tem necessidade de definir tudo aquilo que o rodeia, para que sua cabeça o Mundo adquira um significado. E por isso criou as palavras, para que possa definir conceitos e enformar o pensamento e depois partilhá-lo.
É também através da linguagem e das palavras que se firma a identidade de um povo, ao ponto do poeta escrever: “A minha Pátria é a Língua Portuguesa” e aqui encerra a importância da língua, da expressão, da comunicação...
Em muitas tradições, certas palavras ainda estão dotadas de poder e o acto de as proferir é invocar esse mesmo poder. E por isso temos o Abracadabra e o Hocus Pocus. Ou no nome de Deus que em certas religiões não pode ser pronunciado. Dizer o nome é invocar algo ou alguém, não necessariamente benéfico. Por isso temos tanto cuidado em dizer que alguém tem cancro, optando por dizer que é “uma coisa má”, como se o simples facto de o dizer estivesse a atrair aquele “mal”, a doença toda poderosa sobre qual nos sentimos impotentes e pequenos.
E por isso temos as palavras de benção e as palavras de maldição, e as pragas que estas últimas lançam sobre a pessoa contra quem são proferidas. E falando de ciganos, encontramos um bom exemplo de um povo que, ainda hoje, dá muita importância a este aspecto, a este carácter sobrenatural da invocação das palavras para bendizer ou amaldiçoar.
Recordemos, ainda, a importância do significado dos nomes. Atribuir certo nome a certa pessoa, era ditar a sua personalidade ou, pelo menos, um augúrio, um desejo expresso de que viesse a possuir as qualidades e virtudes que o seu nome encerrava.
Para mim, palavras mágicas são todas aquelas que nos fazem sorrir ou que nos dão prazer. Que nos fazem sonhar ou emocionar. Que nos dão alento e coragem. São aquelas que queremos exactamente ler ou ouvir. Que nos deixam curiosos. Que nos transportam para “outros planetas”, para mundos que vão para além deste. Que nos desafiam. Foram precisamente palavras que me levaram a este comentário. Primeiro aguçaram-me a curiosidade e depois, desafiaram-me. As palavras funcionam como uma chave.
Mas como em todas as invenções humanas, peguemos nessas mesmas palavras e mudemos o contexto em que são ditas ou escritas; mudemos a forma, mudemos o tom e, exactamente as mesmas palavras, aquelas que antes nos encantavam, são aquelas que agora nos matam, que nos amaldiçoam, nos destroem. E descobrimos que afinal Amor é Ódio se escrevem da mesma maneira, e o mesmo se passa com Alegria e Tristeza; Luz e Trevas. E a palavra que une é a palavra que separa. E a palavra que dá a Vida é a mesma que nos condena à Morte.
Mas é esta, na realidade, a magia palavras. As diferentes poções mágicas que com elas podemos fazer, dependendo da combinação de ingredientes linguísticos que misturamos, do modo como o fazemos.
Através das palavras e da linguagem opera-se a verdadeira transmutação alquímica da Vida.

Ganimedes

La Payita disse...

E tal como no comentário da Myrna, não acrescento uma vírgula a este. E tal como esse comentário me lembrou uma história esquecida, este fez exactamente o mesmo. Está anotado! ;)

Aproveito para agradecer a todas as pessoas que se interessam pelas histórias e que as comentam levando-as além. E me desafiam, ainda que às vezes não intencionalmente, a escrever sobre determinados temas.

E já que estou nesta de agradecer, agradeço também a todos os outros que não comentando publicamente, me dão feed-back por outros meios.

É gratificante perceber que estas coisas interessam, que geram aprendizagens novas para todos, que induzem reflexão... E, claro, faz-me bem ao Ego!!! (antes que um amigo que eu cá sei, me diga alguma coisa... eheheheh)

Gracías! Um Grande Olé para todo(a)s! Com Duende!