terça-feira, 14 de outubro de 2008

A minha família cigana


Costumo dizer que tenho uma família cigana. Porque somos muitos. Nunca tinha reflectido muito nisto, mas os acontecimentos dos últimos dias puseram-me a pensar no assunto…

Volto atrás… Estávamos em 2001. Um dos desafios do Nómada para o ano lectivo era trabalharmos a noção de família com as crianças ciganas. Decidimos fazer árvores genealógicas, construindo mobiles, com canas, fio de pesca e cartolinas. Através desta actividade lúdica, podíamos conhecer melhor as famílias com quem trabalhávamos nos Bairros.

Nenhuma de nós tinha formação nas artes decorativas e afins. Fazíamos e fazemos o melhor que sabemos. Inventando e experimentando. Vem-nos dessa altura o hábito de fazermos primeiro entre nós, para depois replicarmos com as crianças. Por isso, a minha família, por sermos muitos, foi a cobaia desta experiência. E durante algumas tardes, enquanto reflectíamos, elaborávamos pareceres, definíamos objectivos e estratégias, essas coisas importantes que os profissionais do social fazem, também recortávamos cartolinas rosa e azul, para as meninas e os meninos, atávamos nós escorregadios de fio de pesca e cortávamos as canas à medida.

Tive, pela primeira vez, uma imagem visual da minha família. Representada num móbil… A geração dos meus avós, paternos e maternos, com todos os meus tios-avôs; a geração dos meus pais, com os três irmãos do meu pai, os seis irmãos da minha mãe; a minha geração, que incluía na altura o meu irmão e os meus quinze primos. Sou a mais velha da minha geração. Estava grávida na altura. Hoje somos mais. Tenho mais um primo e nasceu uma outra geração.

No final desse ano lectivo, houve uma exposição dos trabalhos, a que não assisti, porque estava de licença de maternidade. O meu móbil lá estava, ao lado dos mobiles das famílias ciganas, rivalizando com a maior de todas!

Somos muitos. E barulhentos! Com sentido de humor! E complexos! E solidários… E nem sei se temos consciência disto. Há pouco tempo, estava a conversar com uma amiga num chat, quando ela me diz que tem de ir embora. Ter com a tia. Ia aprender crochet. Não queria acreditar!!! Crochet?!? E ela responde-me que a relação que eu tenho com a minha família, a fez pensar na relação com a família dela. Que achava bonita a relação de proximidade que temos e por isso tinha decidido dar uma oportunidade à família dela. Fiquei a pensar nas mil e uma vezes que a minha avó materna me tentou ensinar a coser na máquina de costura. Sem sucesso…

Quando esta minha avó esteve doente no hospital, a família mais próxima foi às visitas. Sete filhos e doze netos. E enquanto ela distribuía as suas riquezas em testamento (os naperons bordados, as molas de roupa, relíquias com meio século de existência, a dentadura postiça e os fascículos do National Geographic,…), nós, a família mais próxima, ríamos e dizíamos piadas. Fomos convidados a sair, pelos funcionários do hospital. Perturbávamos os doentes. Talvez… Obedientes e conformados às normas sociais, saímos. Não sei se os outros doentes estariam perturbados, mas a minha avó estava feliz…

Sim, claro! Quando um cigano está doente, a família vai para o hospital. E “acampam” lá e pressionam… Imaginem que até conseguem ser atendidos primeiro! Porque são muitos! Até metem medo!... Leio isto tantas, e tantas vezes, na net…

Aqui há uns tempos, uma amiga contava-me que numa tarde infernal, em que esteve horas sem fim na urgência pediátrica, tinha ficado impressionada com a capacidade de organização de uma família cigana que lá esteve, o mesmo sem número de horas. Enquanto ela e o marido se desdobravam em estratégias para entreter a pequenita, doente e farta de ali estar, os ciganos revezavam-se na assistência ao pequenito doente. Que nunca se fartou… Que nunca se perturbou…

Hoje não me apetece escrever sobre o óbvio. Sobre a relação da comunidade cigana com a Saúde, fica a promessa de uma história. Eu costumo cumprir! Hoje escrevo sobre a minha família cigana. E os afectos…

Escrevi na primeira história que, quando falamos de ciganos, falamos de pessoas com tradições, organização familiar, crenças, expectativas sobre a vida, estratégias de sobrevivência social, próprias e particulares. A comunidade cigana organiza-se pelos AFECTOS. Que se manifestam tanto naquele episódio da urgência pediátrica, como nas vendettas, nas vinganças entre famílias… Os afectos, negativos e positivos. A afectividade, o amor…

E lembro-me… Quando tinha os meus onze anos, andava no Ciclo (5º ou 6º ano, na altura), um dos rapazes mais velhos da escola, da “classe dos repetentes”, sem mais nem porquê, passou por mim no intervalo grande e deu-me uma bolachada! Almoçava, na altura, na casa da minha avó, por ser ali perto, via a “Pipi das Meias Altas” à hora de almoço… Contei este episódio a um dos meus tios. Soube, tinha talvez 16 ou 17 anos, que ele e os amigos se tinham organizado, e tinham dado uma sova ao rapaz. Senti-me bem! Querida, aceite, amada. A justiça feita!

A semana passada morreu-me uma tia-avó paterna, a última da sua geração familiar e a primeira a ir para um Lar. Uma das minhas primas, disse-me no velório, que tinha morrido triste, porque não gostava de estar sozinha, longe da família.

Era impossível, não a ter colocado num lar…. Todos trabalhamos. De cada vez, até cada vez mais tarde… E pergunto-me… Se as novas formas de trabalho e de organização social persistirem, como se vão organizar as famílias ciganas? Que se responsabilizam pelos seus, que se organizam de forma a garantirem a assistência afectiva dos seus? Não teremos nós que aprender qualquer coisa aqui? Com as famílias ciganas? E crescer e aumentar, enquanto pessoas?

Tenho uma família cigana. Uns escrevem esboços de livros, que mostram à irmã para uma opinião avalizada; outros ensaiam em grupos de rock ou declamam poesia ou são dreads e fazem graffitis… Outros descobrem o Duende de Lorca, e viajam pelo imaginário do Flamenco… E a família desloca-se com espírito nómada para os ver. Estamos lá todos. A família! Com afecto! Temos consciência disto?

Sim, sim... Nós não fazemos fogueiras, nem casamentos na praceta, durante três dias... Não, nós organizamos almoços na quinta, ou jantares no terraço com barbecue do tio, ou fazemos as férias na casa de praia da tia. Porque podemos!

Costumo dizer que tenho uma família cigana. Porque somos muitos. Mas, sobretudo, porque o que nos une são os afectos…. Camelados, uns nos outros…



4 comentários:

catizzz disse...

Realmente um dos meus passatempos preferidos nos hospitais é observar os ciganos. Porque odeio hospitais, porque raramente nos encontramos nesses espaços por razões agradáveis, porque esperamos muito tempo e a TVI nem assim é digna de observação por mais de 5 minutos. E lá estão eles, sempre. Em conflito aberto com o sistema, sempre a tentar miná-lo a seu proveito. Que inveja! Eu, se fosse cigana, seria com certeza, hipocondríaca! Ter a família toda à minha volta, mimos, mimos e mais mimos. Para além da parte do conflito aberto com o sistema, que para mim é sempre louvável.
A minha filha mais nova foi internada quando tinha apenas 24 dias de idade. Aliás, os internamentos da minha filha mais nova davam, no mínimo, um blog!
Estava a amamentar e vivi aqueles 3 dias desesperantes fechada no Hospital. Apesar do apoio de todos, senti-me só como nunca antes na minha vida. O que eu não tinha dado por uma família cigana naquela altura, acampada lá em baixo em vigilia. "Ó filha" -, diziam os seniores da minha família - " a gente até ia para aí, mas não nos deixam entrar..." E, realmente, com toda a razão.O telemóvel nunca parou com chamadas e mensagens de coragem e força. Mas alguém aos gritos com seguranças e enfermeiras teria ajudado! Porque estamos com medo, zangados, confusos e angustiados num ambiente desumanizado. Porque ela só tinha 24 dias e ninguém nos dizia o que se passava. Porque nenhum bebé devia estar doente. Porque era a nossa menina.
A raiva irracional, a explosão de sentimentos nós guardamos bem cá dentro. Quando tudo acabou em bem, o meu homem disse-me: "um dia, sentamo-nos e choramos por isto, agora não temos tempo." Nunca o fizémos. Nem dessa vez, nem das outras em que a pequenita nos pregou sustos de morte (quase literalmente). Para onde foi o meu choro? Para onde foi o meu grito? A lado nenhum. Povoam os meus piores pesadelos e vivem cá dentro. Ora, não valia mais tê-los atirado à cara de 2 seguranças, 4 enfermeiras e 5 ou 6 médicos pediatras? Deviam pensar em colocar famílias ciganas na gestão dos hospitais, no acolhimento aos doentes, no apoio às famílias. Seria um SNS muito mais humanizado, isso de certeza. Os trabalhadores da saúde talvez tivessem que trabalhar com armaduras, mas isso seria, com certeza, muito fácil para aquela gente tão competente e que sabe sempre tudo...

Unknown disse...

Bem depois de levar quase uma chinelada (mesmo a cigana)..esperei o momento certo para escrever e esse momento chegou....
Há mais ou menos 10 anos entrei no mercado de trabalho, algum tempo depois estava a trabalhar com a La Payita, especialmente com etnia cigana.
Não tinha opinião formada acerca daquele povo daquela cultura, apenas imagens nos hospitais e nas feiras no alentejo, o que foi importante porque não tive de desmontarnada, nem combater medos....mas nada sabia acerca da cultura e da historia da etnia gigana, tudo que aprendi foi com a Payita, com a practica e com os meus proprios erros.
Ainda recordo um dia de chuva torrencial, em que estava marcada uma catividade de capoeira ao ar livre. a La Payita não estava e eu resolvi anular, mas apenas avisei os monitores, pensando que não valia apena ir ao local pois não estaria lá ninguem. Por coicdencia tive de ir ao bairro levar um material, quando de repente fui completamente encurralada e ameaçada com chapeus de chuva, por um grupo de crianças ciganas encharcads e furiosas (com toda a razão. Mais tarde tive a explicação sabia da La Payita..tinha de ter estado lá, além das oportunidades dessas crianças não serem as mesmas das outras crianças, estava combinado estava combinado chuvesse a canivetes ou fizesse um dia de calor infernal, e eu teria de ter estado com elas e dado-lhes uma explicação. caminhando ao lado da La Payita e com o que ela me foi ensinando, hoje partilho essa cultura, com vontade de conhecer cada vez mais....
Por isso quando soube da sua entrada no flamenco, não foi para mim uma surpresa, mas sim uma eolução do caminho por ela percorrido. Não era um vicio compulsivo como o tetris ou o Hi5, mas sima manifestação do que estava escondido adormecido. Para mim os ganchos, a maquiagem, as argolas, foram todas manifestaçõesda mulher que ela èe do q já lá estava. dai quanda ela dança e o duende se manifesta, manifesta-se apenas o que ela tende a esconder e que e libertado atraves do flamenco onde ela ai pode ser ela propria sem medos e receios de mostrar tudo isto.

O blog è outra maneira de ela manifestar-se...e como se manifesta bem :)

O pk de escrever so agora e neste tópico...adoptei a la Payita como minha mãe (não so por ela cozinhar mt bem..) e hj sei que faço parte desta arvore geneologica virtualmente...e como e bom viver numa familia comuitária :)

Das Neves

catizzz disse...

Sem desfazer na proprietária deste espaço virtual louvável, daqui vai um grande "Olé" para a Das Neves! Grande post! Muitos Beijos

Cat

La Payita disse...

Das Neves, Nhonhinhas Maya, Babe Amoriii Alma Gémea... Os nicks desta mulher não têm fim (e metade é ela que os inventa!). Mas este Jaleo é mesmo para ti, FILIPA!

Vou fazer de conta que ela não vai ler isto... Muitas das histórias que serão contadas neste Caderno, foram vividas com ela. Conheço poucas pessoas com tanta disponibilidade, curiosidade, empatia e capacidade de entrega ao Outro, e no caso concreto à Comunidade Cigana.

Ela, que gosta de dizer que não tem paciência, que é uma stressada... Eu nunca a vi meter a mão na anca e pegar na chinela. E acreditem-me... Esta mulher tem uma estrelinha, que se fosse comigo, eram as duas mãos e as duas chinelas, e chamava a minha família toda!!! ;)

Sobre as histórias vividas com ela não vou escrever aqui, senão acabava-se-me o assunto, e lá tinha eu de voltar ao tetris!!! Agora volto à conversa com ela...

Babe... Já estás na família há tanto tempo, que nem te deste conta que os últimos petiscos tens sido tu a fazê-los! E vais saindo à família! ;)

Bem... E agora vou telefonar à minha avó e dizer que lhe arranjei companhia para as tertúlias junto à máquina de costura! Ah poizé!! Pensavas que era só encher o bandulho??? Arranja uns tampões prós ouvidos, conselho materno... :D

Para ti.. Cami, cami, cami... OLÉEEEE!

(Tu levas material ao Bairro? A Sra.Sub-Comissária sabe disso? ihihih )