terça-feira, 7 de outubro de 2008

Chaborilhos e Lacorilhos

Fui à minha primeira Reunião de Pais. Preparada para um debate desorganizado, sem qualquer respeito pela ordem de trabalhos previamente anunciada pela professora, sem o tradicional “dedo no ar”. Foi o que aconteceu! Num país onde a democracia participada é ainda uma “miragem”, a falta de treino na participação em debates e reuniões, o desconhecimento das regras na exposição de opiniões, no negociar de perspectivas, é transversal à cultura, às habilitações literárias, à classe social. Por isso, não me surpreendi…

Mas nada me tinha preparado para o “clima de guerra” que se viveu naquela reunião! A agressividade no discurso de alguns pais, opondo-se e ameaçando a professora, sem escutarem as explicações que esta, cansada e desalentada, tentava transmitir. Acho que a professora optou por ignorar. Passar à frente. Terminar a longa lista de recomendações que o nosso Ministério da Educação (ME), por alguma inspiração divina, tinha decidido fazer dela a Porta-Voz.

Uma das mães, após um discurso inflamado, esteve ao longo de toda a reunião a murmurar, mas de forma perceptível para todos nós, “Parto-te a boca toda!”. Afinal, o seu anjinho de 6 anos apenas tinha agredido fisicamente vários colegas, partido mobiliário escolar e passado um dia de aulas a correr de mesa em mesa, em vez de fazer os trabalhos propostos de Língua Portuguesa… Crianças! Não são todas assim?... Outra mãe insurgiu-se contra a professora porque esta, transmitindo uma norma do ME, estava a negar ao seu educando o direito fundamental, consagrado na Carta dos Direitos da Criança (suponho, que ainda não fui verificar…), de beber um Ice Tea e de comer os seus Chipicaos. Um escândalo!...

Surreal! Não passavam dez minutos do início e já eu me perguntava como era possível não estar metade da nossa classe docente de atestado psiquiátrico. Estávamos no final de UMA semana de aulas…

Ainda não tinham passado meia dúzia de dias, fui convocada para uma Assembleia de Pais. Desta vez, em sede de Agrupamento. Diz-se assim. Fui. Com medo. Sem expectativas. Ordem de trabalhos: eleger os representantes dos Encarregados de Educação para o Conselho do “não sei quê” transitório, porque tínhamos 15 dias após publicação do Regulamento, em Maio, para o fazer, e porque o nosso ME é tão flexível que fechou os olhos e, pronto!, podíamos fazer em Outubro e, pronto!, era só dar dois nomes de cada escola, de preferência das Associações de Pais, que era mais fácil e já estão habituados a prescindirem do jantar e da vida familiar para estas coisas e mais isto não lhes faz diferença, e despachamos assim o assunto e, pronto!, vamos todos para casa cedo!

Esta Assembleia começou às sete da noite. Eram oito horas e vim embora. Decidida a não dar nem mais um minuto da minha vida aquela fogueira de vaidades, de alguns professores e encarregados de educação, especialistas em gestão e associativismo escolares… Verdadeiros profissionais… Vim submergida e esmagada em regulamentos e normas de funcionamento do nosso sistema educativo, que se preocupa e prevê e antecipa tudo, menos a educação das crianças…

E começo por escrever isto, para que não se entenda erradamente o que vou escrever a seguir. Nesta “guerra” que opõe pais e professores, não me sinto em nenhum dos lados da barricada… Que fique claro!

Quando vou buscar a minha filha à escola, fico do lado de cá do portão. Agarrada à rede de arame plastificado, na expectativa de a ver sair do edifício, daqueles típicos da Primeira República Portuguesa. E enquanto a minha filha vai percorrendo o caminho que a leva até ao atropelo de pais e filhos ao portão, vamos encetando um diálogo não verbal, feito de gestos e expressões corporais, onde eu lhe pergunto como correu o dia, se brincou com os amigos, se aprendeu novos ditongos, se tem trabalhos de casa, se comeu o lanche todo… Por gestos, numa pantomina patética, que penso só os outros pais, exilados como eu em mais uma norma do sistema educativo, compreendem… A angústia invade-me, seguro as lágrimas, e pergunto-me porque não posso partilhar com a minha filha, desde que a campainha toca, aqueles momentos, dos mais importantes da vida dela…

Quando contava a uma amiga professora estas angústias e lhe dizia que as escolas deveriam funcionar como os Jardins de Infância, permitindo a circulação livre dos pais no espaço escolar, fui surpreendida com um “Era o que mais faltava os pais meterem-se no espaço de trabalho dos professores!!!”. Senti-me agredida! Calei-me, incapaz de expressar em palavras a estupefacção que me invadiu. E passei à frente, falar de outras coisas… Como a professora da minha filha.

Nesta altura, e como a história já vai longa, estarão vocês a perguntar-se o que tem isto a ver com ciganos… Pois tem tudo! Mais um bocadinho de paciência e eu explico…

As crianças ciganas são educadas em contextos de liberdade e improviso, pela família alargada. Pais, irmãos mais velhos, primos, tios… A comunidade familiar é, toda ela, responsável pela educação da criança, pela transmissão dos valores e das regras.

Para os ciganos, a educação é dada pela família. A instrução pela escola. E esta distinção é muito clara. E, à partida, isto parece perfeito. Em consonância com os despachos normativos do ME. Então porque se ouvem tantas histórias de conflitos com famílias ciganas nas escolas? Famílias inteiras ameaçando professores, algumas chegando inclusivamente ao acto de agressão?

Porque têm um percurso escolar diferente, consequência de práticas educativas diferentes, as crianças ciganas chegam à escola, na sua maioria, sem frequência de um jardim-de-infância; algumas sem saberem pegar numa tesoura ou num lápis… Falta-lhes o treino para desenharem as curvas difíceis das letras, o treino para estarem sentadas cinco horas numa cadeira… Crianças, de um modo geral, curiosíssimas, intuitivas, com uma enorme capacidade para improvisarem soluções; enfim, com todas as competências necessárias para aprenderem rapidamente, mas que não se adaptam e desmotivam. Que se isolam e são excluídas pelos pares não ciganos. Porque brincam diferente, porque falam diferente, porque são ciganas…

E o que faz uma criança, cigana ou não cigana, quando não se adapta? Porta-se mal… A frustração interior expressa-se, quase sempre, em problemas de comportamento. E o que faz um professor? Mandatado pelo ME, o professor age de acordo com o Regulamento Interno da Escola e aplica a sanção. Está tudo certo! Para os não ciganos (e como leram atrás, não para todos!). Mas para os ciganos, esta é uma questão de educação e, portanto, o professor tem de estar mandatado pela família… E os equívocos, os mal-entendidos, começam aqui… Por isso, nós, do Nómada, enrouquecemos a falar da importância dos Mediadores Ciganos nas escolas ou da contratação de Auxiliares de Acção Educativa ciganas…

Como o texto vai cada vez mais longo e as diferenças entre práticas educativas de Payos e Gitanos são material para muitas histórias, vou concluir o meu raciocínio.

Acredito, e acreditei sempre, que as diferenças se esbatem quando nos conhecemos, quando conversamos. Não é possível que comunidade escolar e comunidade familiar, independentemente da cultura ou meio social, se constituam enquanto COMUNIDADE EDUCATIVA, se não conviverem, se não partilharem receios, expectativas, se não partilharem espaços, dividindo tarefas, inventando estratégias conjuntas. Cada um tem o seu papel e isto resulta de uma negociação, clara e transparente para todos. O espaço é de todos! A angústia é de todos! O protesto é de todos! A reivindicação é de todos!

Se eu, paya, da suposta “cultura dominante”, escolarizada, que conheço razoavelmente o sistema educativo, que entendo (embora não me apeteça) as alineazinhas dos despachos normativos do ME… Se eu me sinto excluída da escola, como se sentirão os pais ciganos?

Por isso, não me respondam que nós não temos que nos meter no espaço de trabalho dos professores! Não é isso que se pretende! Respondam-me que não temos auxiliares para vigiar entradas e saídas, respondam-me que os equipamentos escolares estão completamente desadaptados das necessidades educativas dos alunos, respondam-me que é difícil ter vontade de ensinar perante as exigências de um ME, autista e castrador de criatividades e improvisos… Eu isso percebo… E estou convosco… Mas para vos ajudar tenho de “viver” ao vosso lado… No dia a dia… Partilhar espaços e conversar, para nos conhecermos.

Porque, acredito eu, tudo o que queremos… Professores, mediadores, auxiliares de acção educativa, dirigentes de associações de pais, pais ciganos, pais não ciganos… Tudo o que queremos é que os nossos chaborilhos e lacorilhos cresçam felizes! Como me dizia uma outra amiga professora: “O que nos anima são os putos!”.

É tão simples, não é? Então porque é tudo tão complicado?

2 comentários:

Anónimo disse...

Está mais do que provado que as escolas com "paredes de vidro", ou melhor "sem paredes" isto é, sem barreiras que impeçam a comunicação, ou as escolas abertas à comunidade, as escolas que sabem acolher o outro, as escolas dialogantes, são as escolas menos vandalizadas, são as escolas onde as familias se co-responsabilizam pela educação-instrução das crianças e dos jovens e são as escolas onde os docentes e demais adultos se sentem cidadãos e profissionais competentes e felizes... Porquê insistir nos mesmos erros então? Será que somos masoquistas? Será que somos medrosos? Será que somos tacanhos? Ou temos a "mania" de privatizar o que é publico?
Myrna

Anónimo disse...

Pois é... concordo plenamente! Que vontade de vender a casa, deixar o emprego e comprar uma autocaravana. Viajar pelo mundo, mostrá-lo às minhas miudas.Largar da mão esta constante (o)pressão. Ser nómada. Viver, aprender, experimentar livremente. Quem sabe?