quarta-feira, 21 de julho de 2010

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Histórias que se Cruzam




A primeira vez que ouvi esta música pensei: -“Tenho de mostrá-la às miúdas, elas saberão o que fazer com ela!”. Entrávamos em 2008. Comemorava-se o Ano Europeu para o Diálogo Intercultural. Porque não uma coreografia conjunta, nós, as Araquerar, e elas, as Gipsy Stars?

A primeira experiência conjunta tinha acontecido no ano anterior, quando me lembrei de lhes ensinar a coreografia do Camarón, que depois bailámos na Feira de Sant’Iago. Na minha cabeça nascia um novo desafio. Uma coreografia conjunta. As chaborilhas das danças orientais e as payitas das “espanholas”, misturando olés! e gritos do fundo da garganta, xailes e lenços, pés na terra e mãos no ar… Misturando sons e afectos numa música que nos fala de Imigração. Porque não, coreografar o Diálogo?

O desassossego estava instalado. O próximo passo foi desafiar a Filipa Matos, a que espalha magia, para construirmos a “conversa”. As semanas que se seguiram foram de pesquisa na net. As palavras mágicas: flamenco árabe. Começámos os ensaios no Espaço Aberto. A cada braceo, o shiming correspondente. A cada vuelta, um camelo. O Diálogo Intercultural a construir-se ali, longe do financiamento da União Europeia, a fugir ao formulário A38 das candidaturas.

Às terças-feiras, os passos construídos com as Gipsy Stars. Aos sábados, refazia o caminho com as Araquerar e o olhar experiente da Sónia a indicar o percurso, a sugerir xailes e lenços em roda. O refrão, igual para todas: um passo de rumba, o taconeo no compás das moedinhas dos cintos. E o Diálogo construía-se, passo a passo, mano a mano, com ajuda de todas. O momento alto da “conversa”: nós a bater palmas e a jalear, voltadas para as chaborilhas, deitadas no chão, num shiming perfeito de ombros…

Dois meses de ensaios e teimosia. A explicação, uma e outra vez, que aquilo também era trabalho: estar no Espaço Aberto, a bailar, a divertir-me, a construir pontes entre culturas, a dialogar… Fez-se ensaio geral no Centro Multicultural, onde iria acontecer o grande momento: a reabertura do Centro, enquanto espaço de encontro de culturas e afectos, integrada no Mês para o Diálogo Intercultural. As conversas com as famílias das chaborilhas, a mediação de conflitos, as guerras pelos vestidos. A negociação com os pais para autorizarem a participação das miúdas que já não têm idade para estas coisas, porque estão noivas… O costume!

O ensaio correu bem. Os momentos que antecederam o espectáculo também. A Loira a tratar das maquilhagens. Estávamos bonitas. O Duende estava ali. Fomos para o Multicultural. A sala cheia. As pessoas importantes da terra. Os moradores da zona. As comunidades imigrantes. As famílias ciganas. Começámos pela Sarandonga, parto sempre difícil para mim, que não gosto da música. Não a conseguíamos ouvir. Cada uma a dançar para seu lado. A aflição… O que se segue ao passo de rumba? Vamos em que parte? Não podemos improvisar, não se ouve o som… Entram as chaborilhas, a mesma desorientação. Terminamos com Papeles Mojados. Diz quem viu que correu bem, não se percebeu o engano…

Para mim, foi o nosso pior espectáculo. Dois meses a conversar, a negociar afectos… Nessa noite chorei copiosamente, como se diz na literatura. Pelo esforço que não teve retorno naquele dia (teria mais tarde). Nesse dia, não consegui apreciar as “salsichas moldavas” da Roménia, mas aprendi o significado de “som de retorno”. E não houve espectáculo onde tivesse participado a seguir, que não pensasse nos segundos antes de entrar em palco: - “Mucha mierda! Não vai ser pior que no Multi!”. Dois meses mais tarde e teria o meu final feliz, na Feira de Sant’Iago. Os shimings e os braceos numa conversa mágica, na Praça do Mundo.

Estávamos em 2008. Passaram dois anos. Papeles Mojados faz parte do repertório fixo das Araquerar. Da coreografia inicial, muita coisa se alterou. O Espaço Aberto fechou. Não dançamos com as Gipsy Stars; o momento mágico de palmas e jaleos para os shimings perfeitos perdeu o sentido. Enjoei a música. A última vez que a dancei, foi de forma mecânica, a contar passos. Faltavam-me as miúdas. Faltava-me a conversa…

Num outro Bairro (que ainda não lhe penei a história), passinho a passinho, o Diálogo constrói-se desde 2001. Há pouco tempo, o grupo de dança da Escolinha do Bairro da Manteigada foi bailar ao Parque do Bonfim, em Setúbal. Um palco e dezenas de pessoas a assistir. Um grupo de dança, animado pela que espalha magia – a Filipa Matos, dançou Papeles Mojados. Com lenços, camelos e shimings de ombros. As moedinhas dos cintos a tilintar… E só não chorei copiosamente, de orgulho, porque tive vergonha…

O grupo de dança da Escolinha é convidado para apresentações públicas. A Catizzz pede-me a música Papeles Mojados para ensaiar em casa com a filha mais velha. As Araquerar da “nova guarda” (como diria a Myrna) ensaiam a coreografia nas aulas. E eu esqueço a aflição no Multicultural. E lembro-me das filosofias orientais, que dizem que aquilo que atiramos para o Universo nos é devolvido…

As conversas são como as cerejas. Um dia, aqui há muito tempo, lembrei-me de inventar uma coreografia de Flamenco Árabe, a propósito do Diálogo Intercultural. Passamos pelos outros e deixamos bocadinhos de nós, como diz o Exupéry. Bocadinhos que se ligam uns aos outros, afectos que se constroem, “conversas” que contagiam, histórias que se cruzam…



sábado, 22 de maio de 2010

Zonas Expectantes

Estive numa daquelas reuniões onde nos sentimos deslocados. Onde todas as pessoas parecem entender o que se diz, expressando-se de forma eloquente e demorada, comunicando assertivamente para a assistência, que acena em concordância.Senti-me deslocada. Peixe fora d'água.
Peixinho num grande lago, uma frase aprendida na faculdade: "It´s better to be a big fish in a little pond, than a little fish in a big pond". Dita vezes sem conta por um catedrático por desígnio divino, padre por desígnio terreno, com sotaque das Beiras, que nos aterrorizava com perguntas moralistas nas aulas e questões filosóficas nos exames. Um grande peixe. Um pequeno peixe. Alternamos entre os dois estados na vida. E poderia ser de outra forma?
Estive numa reunião onde se falou, e muito, sobre "zonas expectantes". É como me sinto, às vezes: uma zona expectante. Expectante do que esperam de mim. Expectante do que consigo dar. Respondo certo à pergunta certa. Ou respondo errado. Outras vezes, respondo certo à pergunta errada. E poderia ser de outra forma?
Não aprendo Flamenco desde Dezembro (porque não vou às aulas). Sinto falta das aulas da Rita. E o que eu aprendi no pouco tempo que lá estive... Os cds de coisas novas amontoam-se na estante e eu não os ouço. Cortei duas vezes o cabelo, sentindo sempre que atraiçoava o meu duende enquanto o fazia. Não sei se sei a coreografia do Caminito. Faltam-me a Isa e a Mafalda cá em casa para ensaiar. Consigo imaginar coreografias flamencas para músicas que muitas vezes nem flamencas são. Mas ficam ali... Expectantes...
Não vou a encontros do ICE. Não sei se existem novos projectos para as comunidades ciganas. Não leio teses de Mestrado, nem RVCCs, nem pós-graduações. A Myrna só não terá desistido de mim, porque não é pessoa de desistências. Não me apetece escrever. Alinhavo histórias em cima de histórias. Escrevo o seu início, sei o seu fim. Mas ficam ali... Linhas começadas, parágrafos incompletos. Expectantes...
Sinto falta da Sónia. Das músicas que me deu a conhecer. Do seu sentir, do seu conceito de improviso, que fiz dele um lema de vida. Ensaiar, ensaiar e depois... É o que sair! E a coragem para vivermos o que o coração nos diz para viver. Ela, que estará numa fase diferente da sua vida, com os olhos no futuro. Expectante...
Suspendem-se os projectos. Vou ali, já não vou. Não tenho tempo. O que é o tempo? Os minutos contados, no compás de quem respira o ar que o momento permite. Remete-se para depois o que agora não tem resposta possível. E poderá ser de outra forma?
Aprendo sobre ciganos todos os dias. Estou nas escolas, nos bairros. E as pessoas ciganas lá estão, todos os dias. As que conheci crianças, casam e têm filhos. E a ligação nunca se perde, quando o afecto foi sentido. Faço parte de um Projecto, pequeno para quem o financia, mas grande para mim, que é o dos Mediadores Municipais Ciganos. E orgulho-me todos os dias por trabalhar, lado a lado, com um cigano. E fico expectante das novas experiências...
Um pequeno peixe. Um grande peixe. Nas águas revoltas destes tempos, alterno entre os dois estados. No acalmar das águas apercebo-me do que vou aprendendo. Apercebo-me da presença, por ora sossegada, do duende. Estará cá e não se compadece com o tempo que nos pedem. Nem com as expectativas. Está cá e permanece, a aprender, para se manifestar. Expectante, porque tudo tem o seu tempo. E poderia ser de outra forma?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Castanholas


Nas suas diferentes estratégias de aproximação às famílias, a professora da minha filha desafiou-nos, numa reunião de pais, a partilhar saberes e experiências na sala de aulas.

Entusiasmada, corri para casa disposta a transformar as minhas parcas competências de animação em truques de magia capazes de deslumbrar uma turma de 23 petizes desassossegados de 7 e 8 anos, e inchar de orgulho a minha filha, lacorilha exigente, que deitou de imediato por terra as minhas aspirações megalómanas. Contar uma história? Isso toda a gente sabe! Bailar sevilhanas? Isso é para gente grande, os miúdos não acham piada. O melhor mesmo era fazer umas bolachas ou Pais Natal com rolos de papel higiénico... Derrotada no primeiro caso pela impossibilidade de cozinhar numa sala de aulas e, no segundo, pela comprovadíssima inabilidade para os trabalhos manuais, voltei à minha vidinha como ela é, informando a professora que não poderia participar.

Eis senão quando, por alturas do Natal e a propósito de uns embrulhos diferentes que exigiram criatividade para os laços, (re)descobri que sabia fazer castanholas com cartolinas e caricas. Apresentei a proposta à entidade reguladora - a minha filha- e... Foi aceite!!!

Assim, no dia combinado, de mochila às costas e caixote de trabalhos manuais nos braços, entrei na sala de aulas para dinamizar a minha proposta: Flamenco. Fui recebida por uma turma de gente miúda, curiosa e sorridente, e uma filha inchada de importância porque tinhamos preparado aquilo com cuidado e ela iria co-adjuvar-me.

Depois das apresentações, a explicação do que é o Flamenco. A palavra escrita a giz no quadro preto, mais pequeno do que o das minhas memórias da infância, em oposição a Flamengo. A pequena letra a fazer a diferença entre um queijo e uma região da Europa e a Música. A explicação, com recurso a um mapa do mundo de pequenas dimensões, do percurso histórico do Povo Cigano e do Flamenco. O mapa tão pequeno que, com os nervos, não descobri a Índia e ficou para trabalho de casa! A explicação do meu trabalho com crianças ciganas e as aulas de dança com uma professora cigana.

O olhar atento e sossegado. À menção da palavra "cigano", não houve uma expressão, um pestanejar de olhos, uma observação. Apenas o mesmo olhar atento e sossegado. Têm 7 e 8 anos, os preconceitos aparecem mais tarde, na vida.

Da minha mochila começo a desvendar os tesouros um a um: o vestido às bolas, os sapatos com pregos e sem pregos (experimentamos a diferença do som no chão da sala), as flores para o cabelo, os xailes, os leques, as castanholas, as argolas... A turma experimenta tudo e diverte-se. Instala-se o rebuliço na sala. Alegria...

Ponho um cd dos Gipsy Kings a tocar e começamos a fazer castanholas. A minha filha desdobra-se na ajuda aos colegas. Levou o papel tão a sério que nem tempo teve para fazer o leque de papel, enquanto esperávamos que a laca fixasse o pó de giz na cartolina preta. O momento mais complexo, ao contrário do que eu e a professora esperávamos, não foi colar as caricas uma a uma, mas sim fazer o laço à medida do dedo médio. Um menino disse-me baixinho que "essa parte não fazia" porque a "mãe não o deixava fazer o dedo do meio"... Depois de explicadas as diferenças, lá prosseguiu.

Castanholas feitas e o rebuliço volta a instalar-se. Impossível falar e ouvir. O único som que se ouve na sala é o de 23 castanholas a bater. Aproveito para explicar os palos e o significado de compás. Experimentamos uma bulería. Eu bato palmas e eles as castanholas. A seguir, experimentamos o compasso ternário das sevilhanas. Alegria...

No final, a avaliação. Gostaram muito. Querem que volte, desta vez para ensinar a bailar. Meninos e meninas, curiosos e sorridentes. A minha filha inchada de orgulho. Eu inchada de importância. Alegria...

Já tinha saudades destas andanças. E destas escritas.


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Pedras contra Tanques: 180 dias depois


Em Maio escrevi neste Caderno sobre os acontecimentos da Bela Vista. Sobre a relação que nós, "trabalhadores do social", temos com a Comunicação Social. Da forma como o Quarto Poder "trabalha socialmente" a informação.

Agora, 180 dias depois, a Grande Reportagem da SIC volta ao tema. Estiveram no Bairro. Entrevistaram este mundo e o outro. A nossa expectativa era grande. O resultado pode ser visto abaixo.

Deixo-vos com o vídeo promocional e a Reportagem propriamente dita. Comparem! Comentem...

Para já, as opiniões que tenho ouvido divergem.

Uma Reportagem narrativa? A vida de 5 jovens referência do Bairro?

O papel da Religião na estruturação da vida das pessoas? Ou a total ausência do Estado no Bairro, enquanto regulador social?

Eu, pessoalmente, esperava mais. É importante que se passe de facto uma mensagem que rompa os estereótipos do gueto de marginais. Que as fronteiras culturais e sociais que impomos aos outros os condicionam. Que, como diziam os familiares dos jovens entrevistados, é preciso trabalhar e estar atento. Estar presente. Escutarmo-nos uns aos outros.

Ainda assim, soube-me a pouco... E vocês, que dizem?

Histórias afectivamente relacionadas:
http://pachadrom.blogspot.com/2009/05/pedras-contra-tanques.html
E todas as que se seguiram sobre a Bela Vista.







Em Maio deste ano o bairro da Belavista, em Setúbal, foi cenário dos piores confrontos urbanos de que há memória em Portugal.
Seis meses depois, a SIC foi conhecer por dentro o contexto.
Falámos com um dos responsáveis pelos incidentes que, durante várias noites, causaram alvoroço no bairro. E fomos descobrir o outro lado da Belavista.

6500 pessoas a viverem num ambiente degradado e a precisar de ajuda urgente.

Gente diferente. Famílias vizinhas produziram filhos opostos. Cruzámos amigos de infância: um deles licenciou-se e atingiu posição de liderança na faculdade, o outro escorregou na vida e mergulhou no pântano da marginalidade.

Belavista, 180 dias depois elege o exemplo de 5 resistentes que, apesar do bairro, conseguiram ultrapassar o limite.

Segunda-feira, 14 de Dezembro.

Jornalista: Pedro Coelho
Repórter de imagem: Mário Cabrita
Edição de imagem: Ricardo Tenreiro
Grafismo: Carla Gonçalves
Produção: Isabel Mendonça; João Nuno Assunção
Coordenação: Cândida Pinto
Direcção: Alcides Vieira


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Coração das Mulheres Ciganas


Choeur de femmes tsiganes” (coro de mulheres ciganas) é o título que Claire Auzias deu a uma colectânea de 24 testemunhos de mulheres ciganas europeias. Jogando com a palavra “choeur”, que é pronunciada com o mesmo som que palavra coração “coeur”, Claire apresenta-nos as histórias de vida de mulheres ciganas, reveladoras de uma vida intensa que nós não suspeitamos… Vidas de mulheres que encontraram alguns corredores de liberdade na labuta duplamente excludente: por serem mulheres e por serem ciganas, numa Europa que se diz democrática, solidária, acolhedora… A não perder…



"As mulheres que a sua palavra neste livro são singulares. Gitanas, Manouches, Yenish, Romnia, Sinti, viajantes, todas são mulheres ciganas. Elas têm também outras identidades: francesas, suíças, espanholas, romenas. Elas poderiam ser nossas colegas de escola primária, ao fundo da sala, ou na saída da aldeia ou vila, no fundo de um campo. Na periferia da minha cidade natal, elas vão e vêm durante toda uma vida, em torno de espaços de estacionamentos ou de terrenos baldios. O que elas nos dizem do seu quotidiano é inimaginável. Contudo não há revelação nem sensacionalismo, nem furo jornalístico nem grande espectáculo. Não. Humildade, sobriedade, receosas.
De repente, vozes se levantam do outro lado da Europa. Polifonias que nos dizem do seu orgulho, das suas lutas, dos seus desaires, das suas forças. Nas pregas da vida cigana, a emancipação das mulheres também chegou. Ela varre todos os dias práticas arcaicas. Ela ri. Ela joga com o falar familiar das mulheres de hoje. Quarenta anos depois do nascimento do Movimento de Libertação das Mulheres, compus este ramo com as minhas irmãs romnia que nos devolvem o gosto pela liberdade, pela combatividade e esta mistura inegável de gravidade e de ligeireza."

Em Claire Auzias, Choeur de femmes tziganes, Égregores Éditions 2009
http://egregores.editions.free.fr/claire-auzias-choeur-de-femmes-tsiganes.html



A Olga Mariano e eu, tivemos o prazer de conhecer esta mulher singular (à volta de um arroz de polvo em minha casa) de olhos claros e sorriso fácil, sempre atenta ao outro, curiosa q.b., revelando algum pudor nas perguntas que coloca por um profundo respeito pela pessoa que adivinha habitar por detrás de cada olhar, sussurro, suspiro, silêncio…Sendo crítica, luta por uma emancipação das mulheres vinda de dentro e não imposta por modas políticas… Um Jaleo para esta mulher europeia que conheceu por dentro outras mulheres e homens ciganos romenos noutro livro editado em Portugal, em 2000: Os Ciganos.


História penada pela Myrna

Histórias afectivamente relacionadas:
http://pachadrom.blogspot.com/2008/12/no-avesso-do-cenrio.html


sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Tarde Intercultural Cigana - Casamentos Mistos


No final de Maio deste ano, aconteceu (mais) um momento de cumplicidades entre payos e ciganos, entre homens e mulheres. Entre pessoas. Com a presença das Araquerar. Infelizmente não pude participar mas fica aqui o testemunho de quem lá esteve. E aguardo que as Araquerar façam o registo de (mais) uma aventura.




"Os casamentos mistos são um fenómeno social com uma importância e uma visibilidade crescente no mundo actual. Por este motivo, é imprescindível aumentar o conhecimento social que se tem sobre estas famílias, nomeadamente para entender quais são as formas, as dinâmicas e as estratégias de conjugalidade adoptadas por este tipo de casais para superar as suas diferenças culturais e assumir uma verdadeira união conjugal."

Sofia Gaspar, 2008. CIES-ISCTE



Casamentos mistos: um desafio ao amor? Ou o amor faz o milagre da aceitação incondicional?

Desafiaram-se três mulheres de coragem - duas jovens ciganas, balzaquianas, misteriosas, e uma payita, na idade da loba, com a ternura dos quarenta a transpirar-lhe pelos poros - de assumirem a sua diferença, de partilharem com “desconhecidos” o que pertence ao foro privado e que tanto nos intriga - mais os estudiosos (e curiosos) do que o comum dos mortais, porque estas coisas do amor, não escolhem idade, classe social, origem étnica, religião; porque estas coisas do amor são, efectivamente, misteriosas, mágicas, uma química, um duende…

O debate foi lançado com algumas questões-desafios:
O que lhes parece ter sido o toque de magia que as fez unir a uma pessoa "diferente" (terá sido assim tão diferente?), que o acaso (terá sido um acaso?) fez com que se unisse a ela, através de laços conjugais. Quais foram as etapas por que passaram? Quais foram os obstáculos que encontraram e como os ultrapassaram? Que mudanças profundas (se é que as houve) se operam nas suas vidas e nas suas formas de encarar a vida a dois?

Não vou expor aqui o que cada uma quis partilhar, desafiada pelas perguntas lançadas pelas pessoas presentes… A riqueza do debate e da partilha foi imensa e eu não estava lá com o intuito de anotar tudo, como faz um antropólogo… Estava lá para incitar as perguntas, dinamizar o debate, lançar pistas de aprofundamento, aflorar contradições, tentando desmontar estereótipos, dando voz a estas três mulheres muito especiais: Sónia Matos (já conhecida dos aficionados deste blogue), Noel Gouveia (prima da Sónia, filha da Olga Mariano) e Lígia Vitorino (uma antropóloga que veio a descobriu ter casado com um parente da Sónia e da Noel).

Falou-se de obstáculos que se tiveram de encarar de frente, encontrando estratégias para os contornar sem se dilacerar identidades; de dilemas que se tiveram que equacionar; de decisões que se tiveram que tomar, de cumplicidades que se criaram; de novos estares e sentires que se descobriram, e de redes sociais que se construíram… Quando se toma este passo, a vida a dois nunca é apenas uma vida a dois: ela traz consigo duas famílias – com os seus rituais, hábitos, crenças, etc... - que se unem por partilharem um bem comum: a felicidade dos seus filhos e filhas – e aprendem a conhecer a pessoa que habita no(a) Cigano(a) e na(o) Payita(o).

Concluiu-se que os casamentos mistos lidam com os mesmos obstáculos que os outros casamentos também enfrentam e que só o amor, a compreensão, o respeito pelo outro os pode transformar em desafios e oportunidades…! Na intimidade, no privado, na gestão das relações familiares somos muito mais semelhantes do que diferentes… E quando estes laços duram (como é o caso do casamento da Lígia cuja ligação dura há mais de 20 anos) é porque o casal aprendeu a andar com os sapatos do outro e fez caminho com eles calçados!

História penada pela Myrna