terça-feira, 21 de outubro de 2008

Coincidências...


Prólogo

Quando olho para trás, para a minha infância e juventude, não me recordo da presença do Flamenco na minha vida. As duas únicas excepções que assinalo são as castanholas e o xaile que um tio me trouxe de Espanha, que dei a alguém numa das minhas febres de arrumações, e o ter ido a Sevilha numa excursão com a família, da qual apenas registo na minha memória pombas, pombas e mais pombas…

Capítulo 1 – Hablas Castellano?

A América Latina sempre puxou por mim. Pela música, pela literatura, pelas constantes revoluções sociais. Sempre gostei do castelhano, especialmente com o “sonido” cubano ou chileno ou peruano… Uma vez, comprei um curso de espanhol, daqueles do Planeta Agostini. E durante algumas semanas andei entretida com as cassetes e os cadernos de exercícios: “Yo moro en la calle de Las Olivas, numero diez”. Hoje, o interesse pelo castelhano facilita-me a compreensão das músicas flamencas. E tenho no computador links para dicionários. Tenho de perceber tudo, embora o flamenco mais jondo seja difícil porque come as consoantes e arrasta as vogais e usa expressões do calón. A minha mãe costuma dizer-me que, quando eu era pequena, era “muita espanhola” a falar. Deve ser por isso…

Capítulo 2 – O Duende de Lorca

As conversas sobre a Guerra Civil Espanhola. “Por quem os sinos dobram” e o Hemingway. As espreitadelas furtivas nos livros em cima da mesa-de-cabeceira, sentada na cama. Sentia-me quase clandestina, a invadir um espaço que não era meu. E ali estava ele, Frederico García Lorca. Anos mais tarde, numa das muitas deambulações pela net a descobrir o Flamenco, encontro o conceito de Duende. E reencontro-me com Lorca. E durante muito tempo procurei o texto completo “Teoria e Prática do Duende”. Quando finalmente o descobri, li-o avidamente, como se fosse um amigo perdido. Imprimi-o e li outra vez. Reli-o e sublinhei. O Duende, que não se explica, estava explicado!

Capítulo 3 – Vicente Amigo

Eu teria os meus vinte anos. A Feira de Sant’Iago ainda “morava” no centro da cidade. Sair à noite com os amigos. Tropeçámos num concerto ao ar livre. Vicente Amigo. Não sabia quem era. Mas fiquei agrafada ao chão… Rendida. Nos anos que se seguiram, fui ouvindo aqui e ali, por acaso, outros nomes do Flamenco. O Al Di Meola, o Fosforito e, sobretudo, Paco de Lucía. E os incontornáveis Gipsy Kings, nas discotecas. Passou muito tempo sobre aquele primeiro momento. Ouvia os cds das aulas de flamenco e começava a descobrir o flamenco alternativo. Um amigo mostrava-me música, atrás de música. E com um sorriso malandro, a bater as palmas, disse-me: “Este é o Vicente Amigo. Deves conhecer…”.

Capítulo 4 – O Traje Flamenco

(Advertência: Este capítulo pode conter linguagem eventualmente chocante.)

Sempre me fez muita confusão as crianças que no Carnaval se mascaravam de “Espanholas”. Aqueles vestidos de cores berrantes, os folhos, muito pintadas, com o sinal no queixo… Chamava-lhes “putas espanholas”. Anos mais tarde, num dos primeiros espectáculos, quase chorava porque as outras payitas insistiam para que me maquilhasse. E uma delas vem ter comigo, semi-esborratada, e diz-me num desabafo: “Pareço uma puta mexicana!”. A relação estava estabelecida e a conversa iniciava-se sobre os preconceitos que nos inibem a expressão completa do nosso EU. Hoje, se não pinto pelo menos os olhos para um espectáculo, sinto-me despida. Ouço-me dizer coisas como “eu quero a minha saia vermelha às bolas pretas!”… Eu, que nunca suportei bolas! E apercebo-me de que o vermelho foi desde sempre a minha cor preferida. E que desde sempre precisei de ir às compras na companhia de alguém que me controlasse a compulsão de trazer tudo o que existe em vermelho e preto…

Capítulo 5 – As Zíngaras

Cinco mulheres. Em formação. A rir e a brincar com os estereótipos da sua própria condição. E com isto a dizerem-nos que sabem como nós, payos, os pensamos a eles, Ciganos. Foi assim o meu primeiro encontro com as mulheres que algum tempo depois fundariam a primeira e única associação de mulheres ciganas do país: a AMUCIP. Volto a reencontrá-las noutros momentos, pelo Nómada. Participo em workshops de flamenco com as Zíngaras, grupo de baile flamenco nascido na AMUCIP. Quatro mulheres a dançar. E eu agrafada ao chão... Rendida. “A Sónia das Zíngaras começou a dar aulas em Setúbal. Vamos experimentar?” E fui. E hoje faço parte de um grupo que nasce desta espiral de encontros. E danço com ela, em cima do mesmo tablao. E peço-lhe reuniões para que ela me ensine formas de seduzir e de me aproximar às comunidades ciganas dos Bairros…

Capítulo 6 – Granada: Paraíso cerrado para muchos (Lorca)

Estive em Granada. Mil novecentos e noventa e seis. Passeei pelas ruas. Bebi chás nos bairros árabes. O entardecer nas varandas. O Alhambra, inacessível. Marcações com meses de antecedência. A olhar para ele… As Cuevas. O meu primeiro espectáculo de Flamenco. A sala branca, as cadeiras encostadas à parede. O licor de manzana. Os bailaores a três palmos dos nossos olhos. Fiquei agrafada à cadeira… Rendida. Gostava de voltar a Sevilha, mas a Granada ia já! E voltava, uma vez e outra… Há pouco tempo, em mais uma das minhas aventuras na net à procura do Flamenco, descobri uma imagem de um Duende. E pensei que se algum dia fizesse uma tatuagem era aquela imagem. Eu que sempre disse que tatuagens nunca! Demasiado definitivo! Uma imagem de um Duende, pintado numa parede, de uma rua, em Granada…

Epílogo

E de repente lembro-me de uma frase dita num filme que vi há muitos anos, do Joaquim Leitão: “As coincidências são acasos com sentido…”.


(Esta história foi escrita para a minha amiga Mafalda, que lhe inspirou o título e o tema. E porque não lhe conto uma história há muito tempo… A Mafalda, uma artista das ciências exactas. Por coincidência…)




4 comentários:

Anónimo disse...

A chegada do Duende pressupõe sempre uma mudança radical em todas as formas sobre os velhos planos com a chegada de sensações de frescura totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa recem aberta, de milagre, que chega a produzir um entusiasmo quase religioso". (Frederico Garcia Lorca)
Dos meus já 28 anos de educadora de infância, acho que os únicos momentos em que tive a sensação de ter sido visitada pelo Duende, foi quando trabalhei no CAIC da Bela Vista, entre 1992 e 1995, e quando estava no Mercados do Algoz, a fazer animação, uma vez por mês, entre 1996 e 2005. Apenas nesses momentos senti-me estar no “fio da navalha”, trabalhando sem rede, equilibrada apenas por uma profunda convicção de prazer naquilo que estava a viver, porque me sentia recriada, renovada a cada instante, porque improvisava-me a cada momento no acto educativo, na entrega ao outro e na descoberta de mim, sentindo-me “dançando a vida” transformando noutra pessoa... Foram momentos únicos e inesquecíveis que alteraram os meus paradigmas, as minhas crenças...
Que saudades...!
Estou ávida por ser revisitada pelo Duende. Sei que são momentos irrepetíveis mas que muita falta me têm feito para me sentir viva e renovada nesta luta interior para resistir à invasão da burocracia, da normatividade, da tacanhez e da mediocridade dos sistemas (educativo, social, etc...).

Anónimo disse...

E era uma vez uma Payita...

Sempre gostei das estórias, séries e mini-series que me contaste...sempre foi uma coisa que tornava especial a nossa relaçao "flamenco-pessoal" e que foi o passaporte para chegarmos a uma verdadeira amizade.

A vida é feita de coincidencias que nos ajudam a escolher um caminho...e a tua história é um bom exemplo disso...elas dao o significado e a motivaçao necessária para tomarmos uma decisao...seja ela boa ou má mas que de certeza vai mudar a nossa vida e foi isso que, por exemplo o flamenco, fez na tua...

Foi engraçado ler a parte da "puta mexicana" eu ainda hoje me lembro de sentir o ridiculo que era pintar-me, labios, olhos...sentia-me mesmo uma versao rasca das amantes do Diego Rivera, mas depois reparei que havia outra resistente...e vá saiu-me aquilo...
Actualmente já compro maquilhagem e até uso argolas..disso a culpa é tua...
" Todas nós temos de aceitar a puta mexicana que temos dentro de nós" (como te disse no outro dia no chat) Nisso acho que tu indirectamente me pressionaste, melhor ajudaste-me a ver o outro lado, aos poucos...se bem que eu também sou casmurra e fui a última a aderir ao serviço completo de make up e adereços...mas pronto, como o rebanho, já entrei em contacto com a parte visual da minha puta mexicana.

Olé

(desculpem a falta de acentos e de pontuaçao, encontro-me num teclado com sérios problemas)

La Payita disse...

Olé Chica!!!

Ainda bem que comprei um maço grande de lenços de papel na última história...

Não tinha pensado que tinha "entrado" assim na tua vida... (aparte quando nos pomos na quadrilhice, mas isso são outras histórias... eheheh).

E aquilo que tu sentes, sinto eu... Resumindo e baralhando... Duas ovelhas negras, a assumirem as "putas mexicanas ou espanholas" (raios, que isto está a ficar com mau aspecto, mas quem leu a história com atenção, percebe e não leva a mal...), e a caminharem juntas neste pachadrom, que afinal, sempre lá esteve... O Flamenco foi a desculpa!

E estes caminhos são tão mais agradáveis quando temos companhia!! ... Cameladas!!

Besitos! (que eu sei que tu gostas...)

E um OlÉ com Duende para as Chicas del Manouche!!! :D

La Payita disse...

E escrevi, escrevi e não disse uma coisa importante... O costume!!

... Que foi contigo que descobri que se calhar até podia escrever qualquer coisita... Na noite (eram duas da manhã, dormia) em que recebi uma sms que dizia: "Desgraçaaaaaaaaada! O que aconteceu a seguir?".

Obrigada! ;)