segunda-feira, 14 de junho de 2010

Histórias que se Cruzam




A primeira vez que ouvi esta música pensei: -“Tenho de mostrá-la às miúdas, elas saberão o que fazer com ela!”. Entrávamos em 2008. Comemorava-se o Ano Europeu para o Diálogo Intercultural. Porque não uma coreografia conjunta, nós, as Araquerar, e elas, as Gipsy Stars?

A primeira experiência conjunta tinha acontecido no ano anterior, quando me lembrei de lhes ensinar a coreografia do Camarón, que depois bailámos na Feira de Sant’Iago. Na minha cabeça nascia um novo desafio. Uma coreografia conjunta. As chaborilhas das danças orientais e as payitas das “espanholas”, misturando olés! e gritos do fundo da garganta, xailes e lenços, pés na terra e mãos no ar… Misturando sons e afectos numa música que nos fala de Imigração. Porque não, coreografar o Diálogo?

O desassossego estava instalado. O próximo passo foi desafiar a Filipa Matos, a que espalha magia, para construirmos a “conversa”. As semanas que se seguiram foram de pesquisa na net. As palavras mágicas: flamenco árabe. Começámos os ensaios no Espaço Aberto. A cada braceo, o shiming correspondente. A cada vuelta, um camelo. O Diálogo Intercultural a construir-se ali, longe do financiamento da União Europeia, a fugir ao formulário A38 das candidaturas.

Às terças-feiras, os passos construídos com as Gipsy Stars. Aos sábados, refazia o caminho com as Araquerar e o olhar experiente da Sónia a indicar o percurso, a sugerir xailes e lenços em roda. O refrão, igual para todas: um passo de rumba, o taconeo no compás das moedinhas dos cintos. E o Diálogo construía-se, passo a passo, mano a mano, com ajuda de todas. O momento alto da “conversa”: nós a bater palmas e a jalear, voltadas para as chaborilhas, deitadas no chão, num shiming perfeito de ombros…

Dois meses de ensaios e teimosia. A explicação, uma e outra vez, que aquilo também era trabalho: estar no Espaço Aberto, a bailar, a divertir-me, a construir pontes entre culturas, a dialogar… Fez-se ensaio geral no Centro Multicultural, onde iria acontecer o grande momento: a reabertura do Centro, enquanto espaço de encontro de culturas e afectos, integrada no Mês para o Diálogo Intercultural. As conversas com as famílias das chaborilhas, a mediação de conflitos, as guerras pelos vestidos. A negociação com os pais para autorizarem a participação das miúdas que já não têm idade para estas coisas, porque estão noivas… O costume!

O ensaio correu bem. Os momentos que antecederam o espectáculo também. A Loira a tratar das maquilhagens. Estávamos bonitas. O Duende estava ali. Fomos para o Multicultural. A sala cheia. As pessoas importantes da terra. Os moradores da zona. As comunidades imigrantes. As famílias ciganas. Começámos pela Sarandonga, parto sempre difícil para mim, que não gosto da música. Não a conseguíamos ouvir. Cada uma a dançar para seu lado. A aflição… O que se segue ao passo de rumba? Vamos em que parte? Não podemos improvisar, não se ouve o som… Entram as chaborilhas, a mesma desorientação. Terminamos com Papeles Mojados. Diz quem viu que correu bem, não se percebeu o engano…

Para mim, foi o nosso pior espectáculo. Dois meses a conversar, a negociar afectos… Nessa noite chorei copiosamente, como se diz na literatura. Pelo esforço que não teve retorno naquele dia (teria mais tarde). Nesse dia, não consegui apreciar as “salsichas moldavas” da Roménia, mas aprendi o significado de “som de retorno”. E não houve espectáculo onde tivesse participado a seguir, que não pensasse nos segundos antes de entrar em palco: - “Mucha mierda! Não vai ser pior que no Multi!”. Dois meses mais tarde e teria o meu final feliz, na Feira de Sant’Iago. Os shimings e os braceos numa conversa mágica, na Praça do Mundo.

Estávamos em 2008. Passaram dois anos. Papeles Mojados faz parte do repertório fixo das Araquerar. Da coreografia inicial, muita coisa se alterou. O Espaço Aberto fechou. Não dançamos com as Gipsy Stars; o momento mágico de palmas e jaleos para os shimings perfeitos perdeu o sentido. Enjoei a música. A última vez que a dancei, foi de forma mecânica, a contar passos. Faltavam-me as miúdas. Faltava-me a conversa…

Num outro Bairro (que ainda não lhe penei a história), passinho a passinho, o Diálogo constrói-se desde 2001. Há pouco tempo, o grupo de dança da Escolinha do Bairro da Manteigada foi bailar ao Parque do Bonfim, em Setúbal. Um palco e dezenas de pessoas a assistir. Um grupo de dança, animado pela que espalha magia – a Filipa Matos, dançou Papeles Mojados. Com lenços, camelos e shimings de ombros. As moedinhas dos cintos a tilintar… E só não chorei copiosamente, de orgulho, porque tive vergonha…

O grupo de dança da Escolinha é convidado para apresentações públicas. A Catizzz pede-me a música Papeles Mojados para ensaiar em casa com a filha mais velha. As Araquerar da “nova guarda” (como diria a Myrna) ensaiam a coreografia nas aulas. E eu esqueço a aflição no Multicultural. E lembro-me das filosofias orientais, que dizem que aquilo que atiramos para o Universo nos é devolvido…

As conversas são como as cerejas. Um dia, aqui há muito tempo, lembrei-me de inventar uma coreografia de Flamenco Árabe, a propósito do Diálogo Intercultural. Passamos pelos outros e deixamos bocadinhos de nós, como diz o Exupéry. Bocadinhos que se ligam uns aos outros, afectos que se constroem, “conversas” que contagiam, histórias que se cruzam…