domingo, 19 de outubro de 2008

Amanhã não será a véspera desse dia...



Tantas vezes tenho falado aqui no Nómada, que está na altura de contar esta história.

O Projecto Nómada nasceu em 1996, no Instituto das Comunidades Educativas (ICE) e durante mais de dez anos promoveu o combate à exclusão social, cultural e escolar das comunidades ciganas e promoveu a sua participação e cidadania activa. E isto é tudo o que vou escrever do Nómada, enquanto Projecto Institucional. Para os mais curiosos, está todo explicadinho e arrumadinho na página do ICE, aqui ao lado, nas Coisas com Duende.

Esta é a minha história Nómada, do caminho que percorri e a forma como o vivi. E para mim, contar o Nómada, é contar a Myrna: a responsável nacional pelo Projecto, também ela oficialmente apresentada aqui ao lado.

Já sabia quem era antes de a conhecer. Tinha sido educadora de infância dos meninos com quem vim a trabalhar, quando fui para o Bairro. Estávamos em 1997, 1998... O estatuto que ela tinha na comunidade cigana era tão marcante, que eu começava todas as conversas com as crianças ciganas, falando nela: "Ah, tu andaste aqui no CAIC com a Myrna, não foi?". Tinha-me apropriado da sua pessoa, sem a devida autorização. E a conversa seguia e a relação iniciava-se.

Quando finalmente a conheci, num Encontro sobre Prevenção de Riscos, na Biblioteca Municipal de Setúbal, e não me apetece confirmar a data, confessei-lhe a artimanha. Numa expressão típica dela, esbugalhou os olhos e abriu a boca, num espanto... Ainda hoje não sei se pelo abuso de confiança, se pela ousadia da estratégia. Gostei dela, imediatamente!

Daí para a frente, encontrámo-nos regularmente noutros momentos, a reflexão sobre o Bairro a amparar-nos a construção de uma amizade. Era inevitável e, por isso, em 1999 entrei para a rede de pessoas que constituía o Nómada. E os anos que se seguiram foram de intensa aprendizagem, de convivência, de partilha de ideias e sentires. A crescer e aumentar enquanto Pessoa Profissional, enquanto Pessoa Pessoa.

Construímos o livro "Ciganos aquém do Tejo", feito todo a partir da prática, do vivido com as crianças. Aprendemos como a Matemática, como as noções de Espaço e de Tempo, nos moldam e nos transformam a realidade, consequência de termos ou não o nomadismo inscrito na nossa ancestralidade.

A EcoFormação, das 18h30 às 20h30, uma vez por mês. Voluntariamente... Porque estávamos cativados... A documentação distribuída, o resumo da reunião no dia a seguir no computador, assim que chegávamos ao trabalho... As reflexões, o desmontar de preconceitos, a discussão em torno dos dilemas éticos (o mais complexo para mim - o papel da mulher cigana na comunidade), o partilhar de histórias e vivências... O aniversário da Ana Paula a coincidir com a última sessão do ano lectivo, a folha de presenças, eternamente rasurada por mim, num código cúmplice com a responsável, só para dizer-lhe que também ali estava e que queria continuar a estar...

Os Encontros Regionais, Nacionais, todos os anos... A desfazerem toda e qualquer inibição de falar em público. E a confirmarem-me esta suspeita de que não consigo falar para as pessoas, escondida nas novas tecnologias. O powerpoint inútil, eu a contar histórias... Encontros para partilhar ideias e para construir redes de afectos. Na Piscina Municipal de Serpa, os petiscos a representarem as diferentes "culturas" em presença, os chouriços e queijos alentejanos, o pão, as sardinhas do Sado, a caldeirada à Algarvia, os Dom Rodrigos, o vinho tinto - môl olô... A misturarmos tudo, a experimentar o Cante Alentejano, agarrados uns aos outros, num balanço, para não caírmos, como dizia o meu avô...

A terminar num Encontro Internacional. Inesquecível... Pelas aprendizagens novas... Porque conhecemos pessoas diferentes... Ciganos, espanhóis e franceses, professores universitários, a mostrarem a quem ainda não sabia, que não podemos reduzir as pessoas ciganas ao estereótipo, sob pena de perdermos oportunidades maravilhosas de conhecer pessoas diferentes de nós. E o Portinho da Arrábida a servir de tablao a novas perspectivas para olhar o mundo...

A Animação de Mercados... Ainda hoje sinto tristeza por não ter nunca conseguido ir ao Mercado de Serpa e do Algoz. Mas estive no Mercado do Pinhal Novo. A tenda montada. Os materiais de expressão plástica espalhados em pequenas mesas de plástico... Os chaborrilhos a correrem ao nosso encontro... Os pais a confiarem em nós e a continuarem na Venda, deixando-os ao nosso cuidado... A Educação ali, transparente, à vista de todos... O que aprendi com isto foi o suficiente para outras aventuras: actividades no chão sujo das ruas dos Bairros, a animação comunitária, no seu sentido pleno.

E depois outra inevitabilidade aconteceu. Entrei para essa grande família que é o ICE. E outras experiências foram iniciadas. Com o ICE, as ideias que "sentia" organizaram-se em paradigmas, estratégias, objectivos, intencionalidades, sentidos... E aprendi com o Rui d'Espiney que temos de aproveitar os "corredores de liberdade", ainda que às vezes me pareçam recantos de um qualquer T0...

E aconteceu-nos o DLearning. A aprendizagem da democracia, a participação cidadã, em quatro línguas diferentes: alemã, francesa, grega, portuguesa. E estive em Brescos, Atenas, Bona, Berlim... Sempre a descobrir e a descobrir-me...

Neste percurso, lá estava a Myrna. Sempre. Que me disse, quando a conheci, uma coisa que eu sei que ela não gosta que eu repita mas (mais um abuso)... Marcou-me! "Primeiro gostamos deles com o ranhito todo e só depois podemos pedir-lhes para se irem limpar..." E é tão verdade...

A Myrna, que viveu pelo mundo, Moçambique, Argélia, Suíça, cidadã do mundo... Nómada. Que viveu uma das suas mais terríveis experiências em Atenas, quando foi assaltada e lhe roubaram os documentos de identificação. De repente, cidadã de lugar nenhum...

A Myrna. Generosa, solidária. Que ri, quando nos rimos. Que chora, quando choramos. Como se estivesse a acontecer com ela. E teimosa, a bater o pé. Infantil, aqui no seu melhor e maior sentido... De mochila às costas. A esbugalhar os olhos e abrir a boca de espanto, as mãos na face... Cheia de presságios e pressentimentos, que felizmente nunca se realizam...

O Nómada. Nome com o qual os ciganos nunca se identificaram. Com toda a razão! Porque os nómadas somos nós, os Payos, que corremos o país em busca de entendimentos, de empatias, a aumentar... O Nómada Institucional acabou. Mas o Nómada existe e continua em cada um de nós que por lá passou.

O Nómada, a resistir ao invasor. E a Mirnix, de coragem intrépida, a irredutível. A acreditar convictamente que o céu nos vai cair em cima. A agir, a sentir e a entregar-se como se amanhã não fosse a véspera desse dia!

E agora tenho de deixar-vos. Vou ao "Líder", comprar daqueles maços grandes de lenços de papel. Suspeito que serão necessários. Será isto um presságio? Mas enquanto vou e venho, deixo-vos com (mais) uma apropriação indevida da pessoa, sem a devida autorização...


Menino Cigano

Num canto do meu coração guardo
o brilho dos teus olhos,
a entrega do teu sorriso,
a avidez do teu abraço,
a agilidade do teu corpo,
a curiosidade do teu silêncio.

Cada instante
que contigo passo,
aprendo a saborear
a curiosidade do teu olhar,
a agilidade do teu silêncio,
a avidez do teu sorriso,
a entrega do teu abraço,
o brilho do teu movimento.

Cada momento
que comigo passas,
aprendo a mergulhar
no interior do meu olhar,
do meu silêncio,
do meu sorriso,
do meu abraço,
do meu movimento.

Em cada desafio
que me lanças,
em busca de ti em mim,
reencontro em ti
pedaços de mim
que em ti busco.

Agora, sei
que o teu olhar
o teu silêncio
o teu abraço
o teu sorriso
o teu corpo
alumia e aquece
o canto do meu coração.

Mirna Val-do-Rio - Dançando a Vida


"Ciganos aquém do Tejo":
http://www.acime.gov.pt/docs/Publicacoes/CIGANOS/Ciganos_Aquem_do_Tejo.pdf

...

4 comentários:

Anónimo disse...

Desta vez, estou a escrever em Word, para corrigir o português, antes de fazer copy paste para a área dos comentários!:D
Há aqui várias estórias de que nem me lembrava ou nem sequer fazia a mais pequena ideia…
Mas a uma tenho que responder (provavelmente respondendo ao teu desafio propositado, à tua rasteira! :D
“O Nómada Institucional acabou” pergunto eu?
Não, o Nómada institucionalmente não acabou! (Está, talvez, entre parenteses, como explico num dos meus poemas)La payita participou na sua avaliação participada e também contribuiu para a sua nova fase: de projecto passou a ser um processo, uma metodologia de intervenção, a que todos concordaram em continuar a chamar Nómada II. Em que consiste o Nómada II? Para isso, recomendo que vão à página Web do ICE ou à página do Ciga-nos do ACIDI.
Outra coisa tenho que esclarecer: foi também com tantos workshops de dança flamenca dinamizados pela Sónia da AMUCIP que o Nómada organizou nos seus vários Encontros que La payita acabou rendida a esta modalidade de dança e acabou por contribuir para o nascimento do projecto Las Araquerar.
Feito estes esclarecimentos, e depois de muito segurar as lágrimas com esta descrição tão emotiva da pessoa da Myrna, termino com um poema que dediquei a todos os docentes (e demais profissionais :D) do Nómada que me têm acompanhado ao longo desta “missão” inacabada de promover “a cidadania das comunidades ciganas e da transformação da escola”

“Pedaços de vida”
Hoje sei
que sou feita de pedaços de cada um
que cruzou o meu caminhar
Hoje sei
que amanhã farei parte da vida de cada um
que se tiver enleado no meu sentir
Hoje sei
que o meu caminho
está em cada olhar
em cada riso
em cada suspiro
em cada lágrima
em cada raiva contida
que despertei ou que em mim despertaram.
Hoje sei
mas houve tempo em não queria saber
que afinal sou feita de pedaços
de outras vidas
de outros sentires,
de outros pensares,
de outros caminhares.
E quando o descobri,
uma perfeita harmonia de mim se apoderou.
Mirna Val-do-Rio, Dançando a Vida. 2002.

La Payita disse...

Não, não era uma rasteira... É mesmo falta de reflexão. Para mim, institucionalmente teria acabado. Mas é verdade! É um Processo! E ainda por cima, participei na transformação do Projecto em Processo...

E a única explicação que encontro para esta distracção, é esta minha mania de me meter nas coisas e só depois pensar nelas... Faltam-me as reuniões do Nómada e as Interequipas... Para me organizar.

E como não há duas sem três, abaixo o poema preferido desta docente/educador/outros profissionais... ;)


Elogio ao (entre parenteses)

Viver entre parênteses não é
Um não viver
Um suspender
Um falso viver
Um esconder

Viver entre parênteses pode ser
Viver um momento mágico
Deixar-se encantar pelos sopros anímicos da Vida
Entrar na dança do acontecer
Viver intensamente o efémero
Saborear densamente os instantes
Perscrutar os mistérios e enigmas do Mundo

Viver entre parênteses pode ser
Uma lágrima soltada
Um sorriso rasgado
Um olhar penetrante
Um piscar cintilante
Um beijo roubado
Um riso escancarado
Uma cumplicidade descoberta

Há parênteses que se partilham
E partilhas entre parênteses
Há parênteses entrecruzados
E cruzamentos entre parênteses
Há entre parênteses que se escondem
E outras que se revelam

Há parênteses públicos
E outros que são privados
Há entre parênteses que nos esvaziam
E outros que nos alimentam
Há parênteses que soluçam
E outros que sussurram

Há vidas entre parênteses
E há entre parênteses na Vida

O desafio está no saber
Abrir e fechar os parênteses
Com que a vida nos brinda.

Mirna Val-do-Rio - Dançando a Vida

catizzz disse...

Quando percebi que, ao escolher a área cultural, me tinha condenado a angariar dinheiro para artistas, entrei em pânico. Só não desesperei porque estava eu tão farta dos artistas como os artistas de mim (despedi-me numa reunião surreal na qual todos sorriam quando disse que ia embora, e a Chefe lá do sítio aproveitou logo para dizer: "se não saísses era eu que te mandava embora!").
O social aconteceu por acaso, sejamos honestos e realistas, foi onde arranjei trabalho. Mas fiquei muito entusiasmada com este novo desafio, que ainda por cima, metia imigrantes e etnias (esse conceito pantanoso... ó Payita, podias falar nisso aqui no blog...;)).
Desde que trabalho em Setúbal, e no social, conheci muitas pessoas, muitos projectos, metodologias, abordagens, etc, etc, etc. Muitos estão doentes, ou são mesmo mortos à nascença, por variadas razões que agora não me apetece aprofundar (escrevia outra Biblia!). O "Nómada" será uma das excepções à regra. Conheço menos do que devia sobre este "caminho" mas ler-vos (Payita e Myrna)dá-me a confirmação do que intuí sobre o "Nómada". Um projecto verdadeiro, sólido, desenvolvido pela motivação de agir, de fazer, connosco e com outros. Um projecto apaixonante e apaixonado.
Mulheres, gracias por partilharem estas experiências!
Muitos beijos
Cat

La Payita disse...

Olé!

Ainda bem que tu e os artistas se fartaram uns dos outros, senão poderia nunca te ter conhecido... Viva as reuniões surreais (isso acho que não estranhaste no novo trabalho... eheheh)!

Uma história sobre culturas e etnias... E quantas vezes já falámos sobre isto? Tens razão, deve ser mais fácil falar de pântanos!!

O desafio está aceite! Ayayayyyy... Se isto continua assim, nem tão cedo volto ao meu tetris... ;