quarta-feira, 18 de novembro de 2009

P'lo Sonho é Que Vamos: a AMUCIP


“Nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos.”

Mia Couto – Estórias Abensonhadas

Neste meu pachadrom com as pessoas ciganas, nada me tem colocado tantas questões e suscitado tanta reflexão sobre o meu “modo de estar” profissional e pessoal como o estatuto da mulher cigana na sua comunidade. Poderia desenrolar aqui algumas histórias que, de acordo com a minha pertença à sociedade dita maioritária, me fariam saltar para o lado de cá da barricada e construir os muros que fecham os caminhos ao entendimento e à aceitação do Outro. Isso seria o mais fácil. Mas estamos a falar de um povo no “avesso do cenário”, como disse Claire Auzias (http://pachadrom.blogspot.com/2008/12/no-avesso-do-cenrio.html), e por isso vou contar esta história ao contrário.



Em 1999, conheci cinco mulheres ciganas que frequentavam um curso de formação de mediadoras sócio-culturais. Eu estava ali de passagem mas desse breve encontro recordo-lhes os sorrisos envergonhados, o olhar vivo e curioso, a resposta frontal. Brincavam com os estereótipos da sua própria condição, falando “à cigana”, e com isso diziam-me que sabem como nós - os não ciganos, os pensamos a eles -os ciganos.


Voltaria a encontrar-me com elas, aqui e ali, através do Nómada (http://pachadrom.blogspot.com/2008/10/amanh-no-ser-vspera-desse-dia.html). Pela Myrna (http://myrna.com.sapo.pt/), fui acompanhando as suas aventuras e desventuras na constituição daquela que é a única associação de mulheres ciganas do país: a AMUCIP - Associação para o Desenvolvimento de Mulheres Ciganas Portuguesas (http://www.madrugada-cigana.com/amucip.htm).

A ideia foi-lhes sugerida por um formador no Curso de Mediação Sócio-Cultural, que frequentaram de acordo com o Plano de Inserção do Rendimento Mínimo, e foi avante pela mão amiga do Cónego Filipe Figueiredo e da Pastoral dos Ciganos. A vontade, a determinação e a teimosia para baterem com os pés no tablao, e que lhes permitiu materializar o sonho, essas vieram de dentro de cada uma delas.

Cinco mulheres a conquistar o espaço para a construção da sua cidadania. Cinco duendes unidos no sonho de mudar a sua vida e a de outras mulheres, respeitando a sua cultura e tradições. Haverá coisa mais difícil? Fundaram a AMUCIP e aprenderam a linguagem hermética do associativismo formal. Vinham de uma cultura ágrafa, onde a palavra dita é o que basta para assinar a honra, e aprenderam a preencher formulários, elaborar estatutos, redigir actas, apresentar declarações de finanças e certidões de conservatórias, num labirinto burocrático que quase as fez desistir.

Mas o sonho falou mais alto e nasceu a Associação. Durante cinco anos idealizaram o Espaço, lugar de encontros, afectos e cumplicidades para concretizar projectos. A AMUCIP a morar-lhes no coração e nas bagageiras dos carros, os papéis órfãos de sede associativa. O regresso a uma vida nómada, condição ancestral que nunca desejaram.

No dia 8 de Março de 2005 (e poderia ser outro o dia?), depois de baterem a muitas portas, a Câmara Municipal do Seixal concretiza-lhes o sonho e cede-lhes um espaço na Cucena. Estive lá em dois momentos diferentes. O acolhimento caloroso. A casa pequenina, a respirar actividades em movimento. O alpendre a convidar à conversa, no sol de fim de tarde. O jardim a prometer hortas pedagógicas. As mulheres ciganas do bairro em formação, à procura de uma vida melhor para si e para os seus. Os chaborilhos numa azáfama, entre os computadores, as pinturas e as aulas de dança. O leitor de cds no parapeito da janela e as meninas a bailar a sua música. Para quem quisesse ver…

O bulício de quem vive sonhos acordados. E o despertar nos primeiros pesadelos… Construíram a AMUCIP e a sociedade maioritária quis fazer delas interlocutoras, para acabar com os problemas sociais que não consegue resolver. Construíram a AMUCIP e a comunidade cigana olhou-as com desconfiança, pois pensou que elas quereriam falar por toda a comunidade, papel tradicionalmente atribuído aos homens. Sentiram-se em terra de ninguém… Ao esforço de dinamizar uma associação, somaram-lhe o esforço de construir a identidade associativa e de desconstruir medos de um lado e de outro, aproximando fronteiras, culturais e de género.

Recordo um dos momentos em que estive no Espaço, na Quinta da Cucena, sede da AMUCIP. O pedido de desculpas porque não nos podiam dar toda a sua atenção. Estavam no primeiro dia de uma formação para mulheres ciganas, sobre Empreendedorismo. Não podiam dar-nos todas as explicações sobre o que fazermos nós – as não ciganas- com as mulheres ciganas. Sem tempo para perceberem que nós – as payas- aprendíamos tudo ali, a observá-las. E aprendíamos que o nosso caminho é longo e demorado. E tem de ser de paciência, se quisermos construir a nossa teia de laços sociais e redes de solidariedade. Como a que tem o tecelão quando tece a sua manta…

Cinco mulheres ciganas. A mudar o mundo. O delas. O nosso. O dos outros. Nasceram com os olhos a espreitar para dentro e o duende a espreitar para fora. São ciganas e constroem caminhos de entendimento entre payos e ciganos, pontes de comunicação entre culturas. “P’lo sonho é que vamos” é o nome que deram a um Projecto Equal, financiado pela União Europeia, e com o qual se desmultiplicaram em acções para melhorar a coesão social e a solidariedade entre sentires e pensares diferentes.

“P’lo sonho é que vamos” podia ser o nome da Associação. Podia ser o princípio norteador do nosso trabalho com as comunidades ciganas. Porque não?


Esta história está escrita na minha cabeça há muito tempo, tanto quanto o tempo do desafio para fazer este Caderno de Histórias. Teimou em não vir à luz do dia pela responsabilidade que significaria escrevê-lo (que é o mesmo que dizer que sou medrosa). Ficará sempre muito distante daquele que é o trabalho real destas mulheres e de outras que as acompanham na sua resistência à formatação social. As minhas desculpas pelo(s) facto(s).

(Esta história é para a Alzinda Carmelo, Anabela Carvalho, Noel Gouveia, Sónia Matos e, muito particularmente, para a Olga Mariano. As outras quatro GRANDES Mulheres que me desculpem, mas pelo que conhecemos da Olga, penso que deixarão passar esta minha fraqueza. Um Olé com Duende para estas cinco Mulheres e para a AMUCIP ! ARZA! E que continuem a olhar para dentro, agindo para fora…)

Ainda que tenha sido medrosa e nunca tenha escrito sobre a AMUCIP, são muitas as histórias sobre mulheres que afectivamente se cruzam com esta. Serão todas as que apresentam a Palavra Mágica Araquerar e também "Desenhos no Ar" (http://pachadrom.blogspot.com/2009/04/desenhos-no-ar.html).


3 comentários:

Isabel Victor disse...

Já está nos meus favoritos ! Li TUDO. Reconheci muita coisa ________ foi bom. Muito bom.


Obrigada

Um beijo (com volta e Duende)


isabel victor
Museu do Trabalho Michel Giacometti

myrna disse...

Este post sobre a condição feminina e a condição cigana merece um Jaleo muito especial.
Um primeiro Jaleo é para La Payita pelo duende que nos tem habituado no modo como nos fala de coisas sérias de um modo suave, revelando amor, admiração, sensibilidade e lucidez.
Umsegundo Jaleo para estas e outras Amucipianas - Margarida, Vânia, Sandra, etc…- que apenas nos vem confirmar a ideia estudada por historiadores de que a mudança e evolução, por um lado, a resistência, por outro, de um povo faz-se pelas mulheres.
Tal como outras mulheres ciganas o fizeram, convido-vos a espreitar as histórias de vida de 50 mulheres ciganas espanholas (http://www.gitanos.org/publicaciones/50mujeres/) e a ler um livro publicado este ano de 2009 de Claire Auzias “Choeur de femmes tziganes” sobre histórias de vida de 27 mulheres roms de Leste e dos Balcãs, gitanas de França e manouches de Itália e da Alemanha que vão fazendo a diferença paulatinamente…
Um terceiro Jaleo para Todas as Mulheres do Mundo.

Myrna disse...

Eu conheci a Olga através dos seus poemas que foram sendo publicados no Andarilho – boletim do Nómada.
Depois, porque ambas escrevíamos poesia, juntámo-nos num projecto Cultural em Setúbal, dirigido por outra grande mulher – Maria José – e, através deste projecto ofereci, à Olga, pelo seu 50º aniversário, o seu primeiro livro de poemas “Poemas desta vida Cigana” editado em 2000. Depois e, durante mais 3 anos, fui-lhe oferecendo, sempre pelo seu aniversário,os seus poemas compilados em livros, dos quais já se publicaram: “Festejando a Vida” em 2002; “Inquietudes” 2003; “Tesouro da Vida” 2004.
Tentámos que fossem todos publicados numa compilação, para servir de motivação as outras mulheres ciganas que frequentam os cursos de alfabetização… Mas em vão… Só promessas que o vento leva…

Deixo-vos com um poema dela muito conhecido "Ser Cigano" e outro que eu escolhi e que diz muito da persistência desta mulher muito especial.

Ser Cigano

Ser cigano é ser diferente
É como a água a correr
Cristalina e luzidia
Qual riacho a percorrer.
As margens, que mãos tão frias!
O leito, acolhedor
O afluente é a alegria
O desaguar é o prazer.
Será que é compreendido?
O seu andar bamboleante
Quais ondas em maré fria
Qual noite escura e sombria
Que não vês a luz do dia
Até ao amanhecer.
Ser cigano é ser diferente
Ser cigano é ser artista
Pois tudo o que faz, não faz
E tudo o que quer, não quer.
Como será o futuro?
Que futuro nós teremos?
Com tanto para lutar
Sem nunca nos apercebermos
Que difícil e triste realidade
Um dia se esquecerá.
E as batalhas que perdemos!
Mas perder uma batalha
Não é perdermos a guerra
E como trabalhadores e diferentes que somos
Nós juntamos nossas mãos
E com força e harmonia
Carinho e simpatia
Um dia, não muito longe
O sol nos alumia
E como tudo tem um nome
O nosso é alegria.

Natália Maia


Foi no meio da vida

Foi no meio da vida
que encontrei uma passagem.
Era muito estreita e pouco viável.
Tentei penetrar e não consegui
Recuei atrás
quase desisti.
Um pouco à frente
encontrei uma luz
dirigi-me a ela como a uma cruz
havia esperança de continuar.
É pensando nela
que não vou chorar.
Já me sinto tonta
de tanto pensar nessa passagem
não terei lugar
De desilusão em desilusão
vou ultrapassando
cada portão
este é meu destino
e não vou deixar
que outros ocupem
este meu lugar
Se tento lutei para o conseguir
não será agora que vou desistir
foi no meio da vida
que encontrei a passagem
é pensando nela que vou de viagem.

Olga Mariano