terça-feira, 24 de novembro de 2009

As Mulheres Ciganas: Um Desafio à Emancipação do Povo Cigano


As comunidades ciganas vêem-se confrontadas, hoje, com uma lógica de organização social baseada na emancipação da mulher e nas relações democráticas, distinta da sua, profundamente tradicional e conservadora. De facto, a subordinação da mulher ao homem, em que “em pequena, a menina obedece ao seu pai; em mocita obedece ao pai e aos irmãos; em casada obedece ao marido; em velha, obedece aos filhos”; e a subordinação em relação à idade, em que “os filhos obedecem aos pais (mesmo em adultos), os jovens obedecem aos adultos e a todos os ‘homens de respeito’, que são sempre homens de idade, (havendo uma hierarquia análoga entre as mulheres, se bem que a sua lealdade seja sempre em relação ao mundo dos homens)” contrastam em muito com os ideais dos países do mundo ocidental e/ou ditos democráticos.

Diante deste panorama e no interior deste estreito espaço de manobra, as mulheres ciganas têm vindo a ser chamadas a assumir um papel fundamental no processo de emancipação do povo cigano. Elas,sabendo que não devem estar um passo à frente do homem na caminhada para o desenvolvimento, lutam por um espaço ao seu lado, ainda que ligeiramente desviado para trás. Desde criança, são-lhe incutidos, pelas suas próprias mães, tias, avós e irmãs: o saber escutar, calada; o saber servir, submissa; o saber cuidar, dedicada; o aprender, observando. Nelas, o sentido do dever (para com a família e os seus) chega, com frequência, ao ponto de se esquecerem de si próprias enquanto pessoas. De facto, a vida das mulheres ciganas é ditada pelos papéis sociais que a comunidade lhe tem vindo a atribuir. Todavia, à medida que as comunidades ciganas se têm vindo a deixar permeabilizar – através do convívio com os demais cidadãos portugueses - pelas aceleradas mudanças de hábitos de vida e de consumo desenfreado que a publicidade tem veiculado profusamente - através da televisão e dos centros comerciais - pouco a pouco, têm-se vindo a introduzir mudanças nas relações sociais e, obviamente, nos usos e costumes tradicionais.

Para as mulheres, tanto ciganas como não ciganas, serem emancipadas é sinónimo de independência económica... Recentemente, no caso das mulheres ciganas, as situações que a implementação do RMG/RSI (desde 1996) tem vindo a promover trouxeram alguns hábitos novos. Assim, vejamos: como elas, geralmente, não são casadas pelo registo – no BI é solteira - quando se candidatam à prestação do RMG/RSI sendo, para efeitos legais, mãe solteira, elas podem receber uma remuneração para o sustento da família (independência económica). Em troca e para contribuir com a sua quota parte neste novo “negócio” (é, como tal, encarado pelas comunidades ciganas), elas devem mandar os seus filhos para a escola, nomeadamente as raparigas, obrigando-as a assumir riscos sobre a falta de vigilância que a menina deve ter (para se manter “pura e honrada” até ao casamento). Perante as suas famílias, elas assumem riscos para ver os seus filhos evoluírem; elas assumem riscos garantindo o sustento mínimo da sua família - pois é às mulheres ciganas que compete providenciar alimento diário para todos - sem ter que depender, sistematicamente, do dinheiro que os “seus” homens angariam para a família.

Neste sentido, os cursos profissionalizantes a que têm vindo a ser chamadas a frequentar, podem trazer alguns efeitos positivos. Por um lado, é no seio deles que elas vão aprendendo a conviver com outras mulheres, nomeadamente não ciganas, muitas vezes em situações semelhantes, em espaços que promovem um olhar mais atento em relação a si própria, sobre o seu papel como indivíduo para além de filha, nora, mãe, sogra ou viúva. Progressivamente, elas têm vindo a utilizar este espaço/tempo para si próprias, enquanto mulheres, e descobrirem-se enquanto pessoas e também enquanto indivíduas. Paulatinamente, as regras, os usos, os costumes são postos em causa porque confrontados com os de outras mulheres de diferentes culturas ainda que de semelhantes condições socioeconómicas.

As mulheres ciganas têm vindo a saber implementar uma revolução tranquila no seio da família cigana e do povo cigano. Elas sabem, como ninguém, o que significa “o poder atrás do trono”. Elas têm vindo a aprender com alguns dos atropelos cometidos à condição do Homem e da Mulher, em nome da liberdade, pelas sociedades ocidentais e/ou ditas democráticas. Elas sabem que não se conseguirão emancipar enquanto os seus filhos, varões, o não conseguirem também. Por isso, elas lutam, com todas as suas forças, ainda que discreta e vagarosamente, para que as novas gerações possam vir a fruir dos instrumentos básicos de emancipação – ler, escrever, contar, utilizar os computadores, dominar a burocracia, etc. - isto é, possuir a instrução básica necessária para poderem vingar e reivindicar os seus direitos na sociedade dominante enquanto europeus, portugueses E ciganos. Sabem, também, que, se evoluírem mais depressa que os “seus” homens, não terão o apoio dos seus. E sabem que se não tiverem o apoio dos seus, da sociedade maioritária também o não obterão. Porque sabem que todos – abusivamente - desconfiam – quase que visceralmente - das pessoas ciganas façam elas o que fizerem, mesmo que seja professor, mecânico, pedreiro, porteiro, segurança, balconista, motorista, ajudante de cozinha, ajudante de jardim-de-infância, cabeleireira, etc. A prova disso são alguns dos efeitos negativos dos inúmeros cursos de profissionalização que têm vindo a ser implementados e que, depois de se “brincar” com as expectativas das pessoas no que diz respeito à da mobilidade social e à autonomia financeira, são lançadas no desemprego e no assistencialismo, tendo saboreado um pouco outros modos de vida e, entretanto e talvez, terem “desaprendido” a serem ciganas! É como dar um rebuçado a uma criança que, depois de colocado na boca, lho retiram! Os efeitos deste tipo de actuação são, sem dúvida, bastante nefastos e funcionam como antídoto contra as propostas de mudança (sendo que há quem lhe chame “integração”) que lhe são propostas (ou melhor, impostas)!

História penada por:
Mirna Montenegro (ICE-Instituto das Comunidades Educativas / Projecto Nómada)


Este texto foi anteriormente publicado no boletim do projecto “Príncipes do Nada” do PROACT/ISCTE e no “Noticias da Amadora”


Bibliografia:

Carlos, Maria da Liberdade Sousa (2000) Estádios de uma vida ditada: filha, mulher e mãe. A construção do feminino para os gitani, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa

Montenegro, Mirna; Org. (1999) Ciganos e Educação, Setúbal: ICE

Montenegro, Mirna (2003) Aprendendo com Ciganos: Processos de Ecoformação, Lisboa: Edições Educa

VV. AA. (1999) Mujeres Gitanas ante el Futuro, Madrid, Editorial Presencia Gitana

VV. AA. (2000) Mujeres Gitanas, Gitanos, Pensamiento y cultura nº5, Revista de la Asociación Secretariado General Gitano. Madrid

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