quarta-feira, 15 de abril de 2009

Desenhos no Ar

Nasceu cigana e nela trazia inscritos os códigos da ancestralidade cultural. No primeiro sopro que lhe saiu dos pulmões, desenhou-se no ar um futuro: crescer junto da família, aprender as curvas redondas das letras até o corpo tomar igual forma, casar cedo e ter filhos, andar na venda, ajudar os netos a crescer junto da família. O fado cigano…


A mãe cantava-lhe canções de embalar em castelhano. Entre tangos e malagueñas, a infância corria-lhe feliz. Os pés descalços, o vestido rasgado, os joelhos esfolados da meninice vivida na rua com os primos. Foi à escola porque o pai assim o quis, a sonhar-lhe uma vida diferente da sua. Quando o corpo assumiu o seu destino, passou a amanhar a casa e a cuidar dos irmãos, enquanto os pais iam para a feira ganhar a vida. Juntava o troco dos avios do supermercado e comprava romances de cordel que lia quase às escondidas. Suspirava e no entrelaçar cor-de-rosa dos personagens, desenhava no ar futuros diferentes do seu.


Da janela de casa via passar os Outros da sua idade, rumo aos festivais de verão ou às discotecas. De dentro de casa via os primos homens divertirem-se em experiências vedadas à sua condição feminina. Sentimentos diferentes cresciam dentro de si: a revolta pela desigualdade observada e o desejo de voar mais longe. Entre fandangos e rumbas bailados nas festas da família, no soar das palmas, clap clap, bateu o pé no tablao e deu cabaças aos noivos prometidos. O pai reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados e deixou-a seguir.


Revirou os estereótipos do avesso e aproveitou os subsídios sociais. Voltou à escola e aprendeu a arte da mediação entre pessoas, a construir pontes de comunicação entre culturas. Conquistou a independência financeira e ganhou consciência de Si e de Cidadã do Mundo. Um sentimento diferente crescia dentro dela: uma vontade de mudar a vida de outras pessoas, de mudar o fado de outras mulheres iguais a ela. Com as suas Companheiras de Viagem, construiu um sonho e fundou uma Associação. Teimosamente, o orgulho e o desafio estampados nos rostos, bateram o pé e estremeceram o Mundo. O delas próprias. E o dos Outros que se vão cruzando no caminho. Entrelaçam afectos e desenham a carvão esquissos incertos no ar. Vidas que se transformam. Consciências que se revelam. Pessoas que se descobrem.


A dança estava-lhe no sangue. Aprendeu a arte do Flamenco, mediada por um duende inscrito à nascença. E com eles, arte e duende, aproximou pessoas e culturas. Deixa bocadinhos de Si nas alunas não ciganas, as payitas. Conta-lhes histórias de luta e resistência, no compás matemático de uma sevilhana ou na aritmética complexa de uma bulería. As saias esvoaçam no ar, os tacões batem no chão, as palmas ecoam no espaço, clap clap, e as alunas improvisam a música, num duende que entrelaça afectos e esboça futuros. Naquele tablao, umas e outras esquecem que nasceram diferentes e constroem pontes de comunicação. O acolhimento do Outro ali, vivido e sentido. Bailado a compás


Conheceu o Amor, tal como nos romances cor-de-rosa que comprava com o troco dos avios. Apaixonou-se por um Senhor e percebeu que era o Sentimento de uma Vida. Casou às escondidas. Quando contou ao pai, ele chorou um lamento jondo que soou pelos corredores da Existência, numa soleá que expressava o medo do futuro. Os casamentos ciganos duram uma vida. Os casamentos entre payos, não. Ayayayyyy… Mas reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados e deixou-a seguir. Porque para um Cigano não há Valor mais importante que a Felicidade dos seus.


Nasceu cigana. Sentiu-se pequenina durante toda a vida, mas é GRANDE. E da mesma forma que improvisa a música, improvisa o futuro, esquissos incertos no ar. É Cigana, filha do vento. Corajosa, orgulhosa, determinada. E não passou um dia desde o seu nascimento que não desenhe no ar uma canção. A sua.


(Esta história é para a Sónia Matos, a minha Professora de Flamenco. Que continue pela vida fora a improvisar a sua canção. Com Duende! E nunca a poderia ter escrito se ela não tivesse sabido, com arte, construir pontes de comunicação entre nós. Olé Guapa! Mucha mierda!!! E se não é desta que me faz um jaleo na Payita, meto a mão na anca, pego na chinela e faço uma peixeirada! À Sadina!!!)


"Desenhos no Ar" foi publicada na forma de MicroConto no blogue O Galo de Barcelos ao Poder:
http://ogalodebarcelosaopoder.blogspot.com/

O duende para escrever "Desenhos no Ar" surgiu-me através de uma música, que lhe inspira o título. História que penarei dentro de dias.

Histórias afectivamente relacionadas: todas as que apresentam a Palavra Mágica "Araquerar", mas muito particularmente "A Brigada da Peuguinha".
http://pachadrom.blogspot.com/2008/11/brigada-da-peuguinha.html


8 comentários:

myrna disse...

Tão bem penada esta estória...comovente...descrição sublime, doce e espantosamente próxima da realidade...pelo menos da "nossa verdade", construida conjuntamente...De olhos molhados e enevoados, com cumplicidades construida, percebidas e sentidas, vai um grande jaleo para a narradora e outro para a narrada... Duas mulheres de força, balzaquianas, que vivem a vida sempre com Duende...

catizzz disse...

Concordo em absoluto com a Myrna!

Anónimo disse...

Bem estou sem palavras como já vai sendo habito.Do pouco que conheço a narrada, é impossivel ficar-lhe indiferente, assim como é impossivel ficar indiferente a sua história, histroria essa que merecia ser contada, clap, clap payita. Esta historia deveria ir com o vento e ser espalhada por todos os cantos do mundo, para o mundo perceber, que não percisamos de deixar o nosso povo, os nossos costumes , as nossas tradições e ao mesmo tempo perder a individualidade da nossa existência e sermos nos mesmos, e que tudo pode ser conjugado.

Das Neves

Enitupsar disse...

Bem, de facto, esta penada da Payita está muito boa, quase ao nível das melhores que já pude ler aqui neste blog.

Quanto à história da menina/mulher cigana, professora de flamenco, achei única. Existem, felizmente, muitas mulheres assim que remam contra a corrente, que ousam sentir aquilo que não devem e dizem-no numa doçura brutal àqueles que menos querem ouvir. Corajosa esta bailarina, sempre sequiosa por liberdade.

Mas, desculpe-me a Payita, o que mais me impressionou neste post foi a última fotografia. Que encanto de expressão! Que estaria ela a sentir naquele momento de final de actuação, de finalmente conseguir respirar sem pensar em mais nada? No futuro bom ou nas dores do passado?

Provavelmente nem ela, a cigana/menina/mulher, se lembrará. É sempre assim; quando se acaba uma actuação sentida e suada nunca se pensa em nada deixando assim, que todo o mundo sinta por nós.

É um alívio enorme de sentir que somos como somos e que isso, por mais simples que seja, nos satisfaz!

sonia disse...

Estou sem palavras...
muito bom...
Senti-me orgulhosa de ser a personagem desta linda história...
Mas nem tudo são rosas,e houve momentos que tive muita vontade de desistir, mas são pessoas como tu que me ajudam e me dão ânimo para continuar, a acreditar no ser humano...

La Payita disse...

Caro Rasputine ao Contrário:

Se na primeira leitura do comentário tinha ficado curiosa com a identidade do autor mas sobretudo impressionada com a sensibilidade colocada nas palavras escritas, quando descobri a pessoa por detrás do anagrama este comentário ganhou outro valor.

E o valor é ganho não pelo conteúdo, porque quem te conhece bem não se surpreende, mas porque sei que és avesso a estas "coisas públicas".

Gracías! E volta sempre! É uma ordem!!! (não resisti... ihihihih)

El B disse...

O que dizer sobre esta história? O que dizer da forma como está escrita? Como fazê-lo sem repetir rasgados elogios pela simplicidade e beleza como a autora do blog o faz, envolvendo-nos em histórias, momentos e sentimentos tão complexos?
Pode sentir-se o "duende" em cada frase desta história, certamente desenhada no ar, num fôlego de inspiração.
Quanto ao registo biográfico, aqui apresentado sob a forma de uma história… Ocorrem-me três palavras: coragem, persistência e resiliência.
Uma prova de que é possível romper com o aparente determinismo a que estamos sujeitos. Da força interior que nos impele, nos faz questionar e ir mais além.
É, ainda, um exemplo da importância das redes de suporte que nos sustêm nos momentos mais periclitantes e decisivos da nossa vida. Neste caso ilustrado pela figura paterna, para quem a Felicidade se sobrepõe a convenções e estereótipos. Um exemplo que muitos ciganos ou não ciganos deveriam seguir.
Esta história de vida não foi decalcada de nenhum dos “romances cor-de-rosa que comprava” mas inspira, sem dúvida, um lindo romance, certamente mais belo que muitos dos que o “dinheiro dos avios” poderia comprar.
À protagonista desta história: ARZA! E força no seu Caminho da Vida.

Isa disse...

As mulheres não se medem aos palmos. La Payata, um grande talento de contadora de história, volta a surpreender com este lindissimo post. Que bonita forma de dizer a alguém especial que gostamos dela.
A protagonista pela coragem e a inteligência com que tem guiado os seus passos, só nos pode servir de exemplo quando sentimos vontade de baixar os braços e aceitar sem resistir, lutar contra o que nos parece uma fatalidade ou uma consequência natural. Ambas, La Payata e a professora, podem voar mais alto. Uma na escrita, outra agarrando novos desafios. Sem medos!