sábado, 14 de março de 2009

Nenucos


Desafiei um amigo contar-me o seu "pachadrom cigano". Por alturas do Natal, apercebi-me de que na sua lista de compras constava um "Nenuco Aniversário" , um presente especial para uma chaborrilha de 2 anos. E a pergunta impôs-se: como acaba um curioso das relações sociais às voltas com um presente de Natal para uma das mais importantes relações, a que se constrói a partir do respeito pelas diferenças culturais?

E o LB penou uma história...


"Na Vida ocorrem encontros inesperados, em locais improváveis, muitas vezes resultando na criação de laços e relações pessoais igualmente inesperadas e, à partida, igualmente improváveis. Como se uma série de acontecimentos, que não estando ou não parecendo estar interligados, se conjugassem e convergissem a para um determinado momento. Essa análise, conseguimos fazê-la, olhando para trás, reflectindo sobre as coincidências, refazendo todo o percurso.

Foi-me pedido que escrevesse acerca de um desses encontros inesperados e improváveis...

No início de 2002, trocava o conforto do escritório de uma agência de media e um grupo de pessoas, que há muito se tinham tornado mais do que meros colegas de trabalho (ainda hoje somos amigos), por um novo desafio. Menos confortável, mas de longe mais aliciante e mais adequado às minhas expectativas pessoais, profissionais e académicas. Pouco mais sabia acerca do emprego a que me havia candidatado, além da sua designação e que se tratava de um programa que visava a “prevenção da criminalidade e inserção dos jovens de bairros degradados e a formação pessoal, social, escolar, profissional e parental dos mesmos”.

Fui seleccionado. De Media Planner, passava a Técnico de Bairro. Da Quinta da Fonte (Oeiras), deslocava-me para o bairro da Bela Vista (Setúbal). Os meus novos colegas de trabalho: quatro Mediadores Jovens Urbanos (MJU’s)*. Uma equipa de trabalho tão distante da convencionalidade a que estava habituado. Multi-étnica. Multi-cultural. Dois africanos; um cigano; um afro-timorense e eu, o luso. Este foi o meu encontro inesperado.

Durante esse tempo, fomo-nos conhecendo e estreitando relações de companheirismo, a par da relação laboral que nos tinha agregado na mesma equipa. E uma vez mais, este grupo de pessoas tornou-se para mim algo mais do que meros colegas de trabalho.

De todos, foi com o meu colega de etnia cigana que vim a desenvolver uma maior relação de proximidade que evoluiu para Amizade. Muitos foram os momentos em que discorríamos sobre os mais variados assuntos: diferenças culturais; crenças religiosas; assuntos quotidianos... Procurando a cada frase, a cada tema, satisfazer a curiosidade recíproca de quem se está a conhecer, de quem tem um Mundo de questões guardadas, muitas vezes apoiadas em imagens distantes e tão erradas. E foi toda uma descoberta de imensas afinidades que esbateram diferenças, que anularam diferenças. E compreendidas as diferenças que restaram, ambos enriquecemos com elas e aprendemos a respeitar o Outro.

Cigano e Senhor. Calón e Gadjó. Amigo e Amigo.

Essa ligação, mantivemo-la mesmo depois de ele abandonar o programa e de eu ter sido transferido para uma nova equipa, num novo território. E algumas vezes, além dos telefonemas e troca de mensagens de telemóvel, combinávamos encontrar-nos para tomar café, de cada vez que um de nós estava de passagem na área de residência do outro. E foi num desses momentos, numa tarde em que tinha ido a Setúbal, que decidi fazer um desvio ao bairro da Bela Vista. Revisitar o bairro. Reviver recordações. Reencontrar o amigo.

Encontrámo-nos na rua onde ele vivia. Estacionei. Saí do carro. Ele atravessou na minha direcção, trazendo o seu filho ao colo, e um sorriso que eu retribuí. Um abraço. A inevitável viagem pelos tempos em que trabalhámos juntos, a constatação irónica daquilo que tantas vezes eu lhe tinha profetizado para o futuro, como se fosse eu o cigano capaz de lhe ler a sina e antever-lhe o Destino: “- Não faltará muito tempo para te casares, ter filhos e te tornares Pastor do Culto Evangélico”. E ali estava ele, casado, com um filho, frequentador cada vez mais assíduo e com desempenho de responsabilidade dentro da sua congregação religiosa.

Mas as minhas capacidades divinatórias não previram o convite que, à queima, ele subitamente me dirigiu: “- Vamos fazer um acordo – disse – quando eu tiver o meu próximo filho, tu serás o padrinho. E eu, serei o padrinho do teu, quando tiveres um!”

Não queria acreditar no que ouvia! Eu, um pailho acabava de ser convidado a ser padrinho de uma criança cigana?! E senti-me duplamente honrado. Aquele convite trazia consigo a total e derradeira afirmação de que as diferenças são um mero preconceito; que a Amizade está para lá de questões mesquinhas que tantas vezes criam barreiras desnecessárias e tão estúpidas.

E aceitei! Aceitei com toda a convicção! E afirmei a honra que ele acabara de me conceder.

Aquele compromisso, ali firmado naquela tarde, naquele local tão improvável, veio a ser concretizado meses mais tarde.

E hoje, sou padrinho de uma linda menina, que tem no seu segundo nome, o meu segundo nome na versão feminina. Porque foi essa a forma que me ocorreu de afirmar o compromisso que assumi, de dizer orgulhosamente: Ela é a minha afilhada e tem o meu nome no seu. Porque naquela criança, no seu nome, está fundida a união do seu pai e do amigo do seu pai, agora, além de amigos, compadres. Naquele nome celebra-se a união entre Cigano e Senhor. Mais do que isso, a constatação que não tem de haver separação entre Cigano e Senhor.

E no último Natal, entre as compras habituais, havia um Nenuco para uma menina, que é a minha linda afilhada, o meu querido Nenuco."

LB


*MJU’s – jovens, preferencialmente, residentes nos bairros sujeitos a um período de formação. O trabalho dos MJU’s possibilitou a “proximidade e envolvimento dos jovens na reconstrução das suas relações com o meio envolvente bem como na dinamização de grupos formais e informais de jovens”.

“A chave do programa é a figura dos jovens mediadores urbanos e dos tutores, recrutados nos bairros vulneráveis, também eles com percursos de risco. Incluí-los na estratégia servia, ao mesmo tempo, três fins: dava-se-lhes um trampolim temporário para outros voos, tornavam-se modelos positivos para outros como eles e, por conhecerem o terreno, era-lhes mais fácil fazerem a ponte com os jovens que se pretendia influenciar. (…) Eram eles as melhores portas de entrada em bairros”

http://www.acidi.gov.pt/modules.php?name=News&file=print&sid=439

5 comentários:

Anónimo disse...

Olá LB...
Linda história, feliz enlace! Bravo!Que inveja!...
Mas...olhando para dentro de mim (nas costas dos outros vejo as minhas) podia cair na tentação de des-ocultar os laços que se desfizeram depois de se terem dados dois passos semilares esse teu passo... Como em tudo na vida existe o reverso da medalha, o avesso do encontro, o cenário ao contrário...Ainda que, intelectualmente, perceba e tenha ultrapassado o meu desaire na construção desses dois passos, emocionalmente ainda não me refiz do embuste em que se podem tornar esses passos... Talvez um dia, este meu coração se refaça... e depois de reconstruir um desenlace menos positivo do que o teu, eu possa "penar o meu lachadrom", em tudo muito semelhante ao teu LB, só que a dobrar. Mas há quem diga que, na primeira qualquer um cai, na segunda se cai ou não, na terceira... Por ingenuidade caí na primeira,como tu surpreendida (e talvez interpretando esse facto como se de uma lisonja se tratasse, semelhante ao da "Raposa e do Corvo"); por afecto e convicção caí na segunda; por ter sido magoada (naquilo que é o mais humano dos sentimentos - a confiança dentro de uma amizade que se quer mútua -, não volto a cair em mais nenhuma...

La Payita disse...

Conheço ambas as histórias que aqui se contam... Melhor a da Myrna, talvez. E por isso sei do que fala.

Quero acreditar que, mais uma vez, estamos perante diferenças individuais e não semelhanças culturais... Por isso, vou cruzar os dedos. E que no pachadrom do LB se cruzem simplesmente os afectos - AMALE!

Esta história fala também de uma outra questão a que já me referi algumas vezes: os Mediadores. Sejam Jovens Urbanos ou Sócio-Culturais (como é o caso das mulheres ciganas que constituem a AMUCIP), a grande questão é que se investiu na sua formação, retirando-os daquilo que são as suas referências familiares e culturais, para os deixar em lado nenhum... Num trapézio sem rede!

Ambas situações regulamentadas pelo Estado, em Conselhos de Ministro, porque em momentos de crise é preciso mostrar trabalho na área social... Mas o seu Estatuto nunca foi definido.

E portanto, temos pessoas com formação para trabalhar em contextos culturais específicos, a construirem pontes entre culturas, a criar laços... A trabalhar como auxiliares de acção educativa e outras coisas que tais. E não estou a desvalorizar o papel destas pessoas, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa...

E mais uma vez digo: para quando a definição e enquadramento legal do estatuto de Mediadores?

Vou na terça-feira assistir à apresentação dos resultados de uma Audição pela Assembleia da República sobre a Comunidade Cigana. Na qual participei. Onde se falou e muito nesta questão. Será que nos ouviram?

Uma história a ser penada um destes dias...

Até lá...

Um Olé com Duende para o LB e que siga o seu caminho cigano, com sobressaltos, mas dos bons!!! :)

catizzz disse...

Linda história de facto. Espero que essa ligação continue por muitos e bons anos! Não conheço a experiência de que fala a Myrna, mas obviamente não correu bem...
E esperemos que a questão dos mediadores se desembrulhe finalmente, que já não há paciência!

Anónimo disse...

Por razões profissionais associadas a um gosto muito grande de viajar tenho conhecido pessoas de muitas culturas,hábitos e religiões.Do Perú à Costa do Marfim,de Tlaquepaque a Tegucigalpa, da Índia dos marajás e dos párias ao Puerto Banus dos milionários, no Dubai mais cosmopolita ou na fechada Arábia Saudita...E em todas essas buscas, viagens e estadias o que tenho constatado, depois de ultrapassar as naturais reservas iniciais, é que as pessoas são sempre muito semelhantes, descontando o já mencionado folclore, com os mesmos objectivos de vida, prioridades e sentimentos. A aldeia global é mesmo uma realidade...

Anónimo disse...

Ainda há uns dias atrás via uma reportagem onde eram apresentados dois jovens que tinham respondido a um anúncio que dizia "OPORTUNIDADE". E assim, foram seleccionados para trabalhar a uma escola. Função: Facilitadores!
Ora, quando descrevem as funções que desempemham, os Facilitadores mais não eram que Mediadores Jovens Urbanos - MJU's (nomenclatura adoptada no âmbito do Programa Escolhas!
Curioso, foi o próprio Programa Escolhas ter outra figura, que dava nome a um projecto de bairro, designado por Tutores de Bairro que, no fundo, não ía muito além do...MJU!
Para mim, os MJU's foram a maior inovação e chave de sucesso daquele programa de intervenção social e, simultaneamente, o seu maior fracasso. Porquê? Vejamos: Quantos MJU's foram integrado profissionalmente pelo Programa? Quantos deles viram concretizadas as expectativas que o Programa lhes criou? Que enquadramento legal lhes foi dado? "MJU, O que é isso?"
Não deveria ter sido a integração destes a primeira consequência de sucesso, servindo de exemplo?
E ao invés de se dedicar tempo a definir e legislar, definitivamente, a função de Mediador, continua-se a criar: Tutores; Facilitadores; Interventores; Articuladores e outras "dores" a quem desempenhando uma função tão importante, não se consegue desvincular deste limbo.
Enfim...Não há mesmo paciência!