"Se na'bailas bem, mato-te!", dizia uma das mães para a sua chaborrilha, sorrindo, à entrada do autocarro que levaria as Gipsy Stars pela primeira vez à Feira de Sant'Iago. Estávamos no final de Julho de 2006.
O grupo tinha nascido meses antes num centro comunitário do Bairro - o Espaço Aberto, no ateliê de Danças Orientais. Um grupo de meninas ciganas, encantadas com as novelas do Clone e as Shakiras da televisão. Chaborilhas a aprenderem uma arte que fazem como ninguém: dançar!
E a Professora a preencher-lhes o imaginário infantil, com histórias das Mil e Uma Noites, qual Xerazade, a mostrar-lhes por artes mágicas a voar no tapete dos sonhos. Mas ao contrário da Xerazade do Livro que contava histórias, esta a escutar-lhes as histórias.
As chaborilhas numa idade em que o corpo se transforma, em que o sentir é outro... As chaborilhas transformadas em Jasmines, a sentirem curiosidade e a perguntar pelo primeiro beijo do Príncipe Aladino. E uma Professora a ensinar os shimins e os infinitos das Arábias, a espalhar moedinhas de cintos, a espalhar afectividade. E a construir uma relação de cumplicidade que chegaria às famílias. A confiança, a educação transparente. Informal. A construir pontes entre duas culturas. A comunicação...
E depois, o desafio. A irreverência, o contestar das regras. Os momentos difíceis. A aflição de não conseguirmos gerir um espaço numa relação de professora-alunas. Elas a desafiarem a autoridade, a impôr a sua vontade num espaço que também é delas. E com isto a dizerem tão simplesmente, como todas as crianças: "Nós gostamos de ti. E tu, até onde gostas de nós?".
Senti isto na pele quando me desafiaram, em 2007, a ensinar-lhes uma coreografia. Aceitei o desafio, arregacei as mangas e ensinei-lhes a primeira coreografia que aprendi com as Araquerar: "Como el agua", do Camarón. Aqui, com a dificuldade: ensinar ciganas a bailar "espanholas". Ensinar o quê, como? Elas que dançam instintivamente, a expressividade ali, com Duende...
E aqueles momentos recordo como do mais puro prazer e aprendizagem. As miúdas a aprender a concentração que exige respeitarmos o nosso espaço no tablao, a aprender a disciplina que exige contar tempos, a aprender o sapateado quase inexistente no improviso da dança cigana.
E eu... A aprender a ensinar. A aprender o quão difícil é explicar um passo. A reapreender para poder explicar: "Eu sei lá como faço isto! Ora deixa cá pensar...". A aprender a negociar o espaço. A gerir conflitos entre elas, o espelho demasiado pequeno para todas. A gerir conflitos entre famílias... A construir afectos. Elas a dizerem-me, sem palavras: "Nós gostamos de ti. E tu, até onde gostas de nós?".
Fomos bailar à Feira de Sant'Iago 2007, pequenas e grandes, Gipsy Stars e Araquerar. "Como el agua", do Camarón. Num palco. A partir daí, o meu estatuto mudou. Sou aquela que baila espanholas com a "Cigana da Arrentela". Encontro famílias e crianças nos Bairros e o olhar é outro. O meu olhar é outro.
Um dia, passado quase um ano, num outro espectáculo, as Gipsy Stars rodeavam a minha Professora e pediam-lhe para ela lhes ensinar a dançar, ao que ela disse para me pedirem a mim, que estou ali perto. As chaborilhas responderam: "Ela baila bem, mas é payita!". Passado o choque inicial da rejeição, só pensava "ela baila bem..". Miúdas ciganas, que dançam como ninguém a dizerem isto... Senti-me feliz. Payita! Senti-me bem com o nome. Não o larguei desde então!
Depois da Feira outras aventuras aconteceram. Mas ficam para outras histórias! Nesta gostava que ficasse inscrito em vós, o papel dos sonhos. E do prazer. Porque não foi apenas necessário gerir conflitos com as chaborilhas e entre famílias... Como explicar que o que eu fiz é trabalho? Através de uma actividade que me deu prazer, construí relações com uma comunidade. Pontes de comunicação entre culturas. Porque é que o trabalho tem de ser sempre uma chatice?
Hoje passo nas ruas do Bairro e as miúdas vêm ter comigo. Um beijo, cinco minutos de conversa. Nas esquinas, a conversar, as famílias depois dos mercados. A olharem para mim. Diferente. E eu... La Payita... Só queria ser o Ali Babá, agarrar na lâmpada do Génio e esfregar... Conceder-lhes os desejos todos!
(Esta história é para todas as crianças ciganas, e para as Gipsy Stars em particular. Que consigam realizar todos os sonhos, que sonham a dormir ou acordadas... E para a Filipa Matos, Xerazade das Mil e Uma Faces, a que espalha magia...)
O grupo tinha nascido meses antes num centro comunitário do Bairro - o Espaço Aberto, no ateliê de Danças Orientais. Um grupo de meninas ciganas, encantadas com as novelas do Clone e as Shakiras da televisão. Chaborilhas a aprenderem uma arte que fazem como ninguém: dançar!
E a Professora a preencher-lhes o imaginário infantil, com histórias das Mil e Uma Noites, qual Xerazade, a mostrar-lhes por artes mágicas a voar no tapete dos sonhos. Mas ao contrário da Xerazade do Livro que contava histórias, esta a escutar-lhes as histórias.
As chaborilhas numa idade em que o corpo se transforma, em que o sentir é outro... As chaborilhas transformadas em Jasmines, a sentirem curiosidade e a perguntar pelo primeiro beijo do Príncipe Aladino. E uma Professora a ensinar os shimins e os infinitos das Arábias, a espalhar moedinhas de cintos, a espalhar afectividade. E a construir uma relação de cumplicidade que chegaria às famílias. A confiança, a educação transparente. Informal. A construir pontes entre duas culturas. A comunicação...
E depois, o desafio. A irreverência, o contestar das regras. Os momentos difíceis. A aflição de não conseguirmos gerir um espaço numa relação de professora-alunas. Elas a desafiarem a autoridade, a impôr a sua vontade num espaço que também é delas. E com isto a dizerem tão simplesmente, como todas as crianças: "Nós gostamos de ti. E tu, até onde gostas de nós?".
Senti isto na pele quando me desafiaram, em 2007, a ensinar-lhes uma coreografia. Aceitei o desafio, arregacei as mangas e ensinei-lhes a primeira coreografia que aprendi com as Araquerar: "Como el agua", do Camarón. Aqui, com a dificuldade: ensinar ciganas a bailar "espanholas". Ensinar o quê, como? Elas que dançam instintivamente, a expressividade ali, com Duende...
E aqueles momentos recordo como do mais puro prazer e aprendizagem. As miúdas a aprender a concentração que exige respeitarmos o nosso espaço no tablao, a aprender a disciplina que exige contar tempos, a aprender o sapateado quase inexistente no improviso da dança cigana.
E eu... A aprender a ensinar. A aprender o quão difícil é explicar um passo. A reapreender para poder explicar: "Eu sei lá como faço isto! Ora deixa cá pensar...". A aprender a negociar o espaço. A gerir conflitos entre elas, o espelho demasiado pequeno para todas. A gerir conflitos entre famílias... A construir afectos. Elas a dizerem-me, sem palavras: "Nós gostamos de ti. E tu, até onde gostas de nós?".
Fomos bailar à Feira de Sant'Iago 2007, pequenas e grandes, Gipsy Stars e Araquerar. "Como el agua", do Camarón. Num palco. A partir daí, o meu estatuto mudou. Sou aquela que baila espanholas com a "Cigana da Arrentela". Encontro famílias e crianças nos Bairros e o olhar é outro. O meu olhar é outro.
Um dia, passado quase um ano, num outro espectáculo, as Gipsy Stars rodeavam a minha Professora e pediam-lhe para ela lhes ensinar a dançar, ao que ela disse para me pedirem a mim, que estou ali perto. As chaborilhas responderam: "Ela baila bem, mas é payita!". Passado o choque inicial da rejeição, só pensava "ela baila bem..". Miúdas ciganas, que dançam como ninguém a dizerem isto... Senti-me feliz. Payita! Senti-me bem com o nome. Não o larguei desde então!
Depois da Feira outras aventuras aconteceram. Mas ficam para outras histórias! Nesta gostava que ficasse inscrito em vós, o papel dos sonhos. E do prazer. Porque não foi apenas necessário gerir conflitos com as chaborilhas e entre famílias... Como explicar que o que eu fiz é trabalho? Através de uma actividade que me deu prazer, construí relações com uma comunidade. Pontes de comunicação entre culturas. Porque é que o trabalho tem de ser sempre uma chatice?
Hoje passo nas ruas do Bairro e as miúdas vêm ter comigo. Um beijo, cinco minutos de conversa. Nas esquinas, a conversar, as famílias depois dos mercados. A olharem para mim. Diferente. E eu... La Payita... Só queria ser o Ali Babá, agarrar na lâmpada do Génio e esfregar... Conceder-lhes os desejos todos!
(Esta história é para todas as crianças ciganas, e para as Gipsy Stars em particular. Que consigam realizar todos os sonhos, que sonham a dormir ou acordadas... E para a Filipa Matos, Xerazade das Mil e Uma Faces, a que espalha magia...)
3 comentários:
É muito comovente o teu post. Já me fartei de lacrimejar! O que seria interessante também dares-nos conta e partilhares connosco é a forma como acontece a desestruturação e a restruturação de um improviso para uma consciencalização dos passos em coreografias organizadas. Isto é, sabemos todos que nas festas ciganas, se dança com Duende, em improviso, ao despique entre uns e outros... E sai tudo muito harmónico. O que eu gostaria de ver retratado é o desconforto que acontece quando se tenta organizar um improviso, quando se tenta formalizar o informal, quando se tenta domesticar o Duende! E a sensação de mal estar que cria nas pessoas que dançam sem coreografia e com muita sensualidade e Duende quando se lhes pedem para "domesticar" o seu corpo!
Provavelmente, é o mesmo desconforto que eu sinto quando me pedem para me soltar e improvisar sobre uma coreografia que ainda não "domestiquei".
Esta dificuldade prende-se com outros saberes: por exemplo, quando se pede a uma criança, que faz calculo mental muito rapidamente, que ponha a conta "em pé" e que explique o seu raciocínio, desmontando-o e reconstruindo-o segundo uma outra lógica!
Este tipo de desconstrução e de reconstrução transmite-nos algum desconforto, alguma insegurança, mas depois de reencontrar a sua lógica, o seu sentido, dá-nos prazer...! Esse exercicio de desmontar, para saber como funciona, e remontar de outra forma, exige disponibilidade para a aprendizagem... Esse caminho também deveria ser percorrido pelos professores, pelos técnicos de serviço social, pelos animadores, enfim, por quem tem o dever de lidar com as pessoas, fazendo-as crescer e desenvolver! Porque nesse processo de crescimento do outro, também, nós crescemos, também nós nos desenvolvemos. Todos enriquecemos...
:)!!!
La Payita...
Não vou pedir desculpa pelo sorriso!
És Grande...
Simplesmente MARAVILHOSO!!!
Que história linda!!
Não me espanta nada, vindo de uma pessoa tão maravilhosa como tu!!!
Sinto um aperto no peito, uma mistura de....admiração,orgulho,força...
Fico muito feliz por fazer parte da tua maravilhosa história.
Obrigada por tudo!!!
És linda!!!
MAKTHUB
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