sexta-feira, 31 de julho de 2009

O Formulário A39



Preâmbulo

Confesso que tinha saudades de participar na Interequipas do ICE (http://www.iceweb.org/). Há quase dois anos que não me acontecia e apesar de entupida em trabalho e da minha presença lá significar rebentar com a agenda, bati o pé e ARZA!, pus-me a caminho de Azaruja, entre Évora e Estremoz. Não me arrependi…

As Interequipas são, para mim, momentos de convívio e reflexão sobre a animação comunitária e a democracia participativa, com pessoas desassossegadas de norte a sul do país. Numa altura em que a nossa democracia nos vai impingindo o Manual Social do Bem-Dizer e do Bem-Intervir, estes encontros lembram-me episódios do “Alô, Alô”, onde espero sempre que me apareça numa das tertúlias uma francesa de gabardine a sussurrar-me em tom conspirativo: I only say this once!

Todas as Interequipas têm um tema. Todas me deixam a conspirar sozinha, com os meus botões. Todas me fazem questionar o que faço e como o faço. Todas me deixam um ou outro momento marcado para a eternidade. Esta , que se realizou no sossego de um monte rural, em data que não posso especificar (para que os formulários das candidaturas cumpram os requisitos), teve como tema: “Para a Construção de um Pensamento Estratégico”.

Falou-se e muito sobre a “Cidadania no exercício da profissão” e sobre o “Desenvolvimento Local e Periferias Urbanas”. Como não me proponho nesta história a escrever o Formulário A38, deixo esse relatório para outro dia e outros espaços. O que escrevo nesta história é o que retenho enquanto profissional, mas sobretudo enquanto pessoa desassossegada e que teima em resistir à formatação social. Nesta história fica o Formulário A39…

Alínea a) – Fazer dos obstáculos, recursos

Diz-se que devemos aproveitar as sinergias dos intervenientes para construir projectos. Que devemos ter objectivos comuns. Evitar o conflito a qualquer preço. Rentabilizar recursos, é o lema das parcerias. Nas nossas cabeças isto pressupõe caminharmos juntos…

Algures no distrito de Portalegre, aqui há uns anos atrás, dinamizava-se um projecto de formação profissional com a comunidade cigana. Os homens ciganos frequentavam um curso de pintura, que lhes assegurava o rendimento mínimo. Impôs-se a concretização dos ensinamentos. Ora o posto da GNR local precisava de ser caiado. Foi-lhes proposto que os ciganos o pintassem. O comandante entrou em parafuso: “E as armas? A sala das armas?” Após intensas negociações, mais difíceis de gerir para o lado das forças de segurança, a iniciativa aconteceu. O posto foi caiado e o dia terminou com um convívio entre ciganos e GNRs. Pelo meio, o comandante a dizer, nervoso: “Mas aqui há ciganos!” E o responsável pelo projecto a responder-lhe: “Mas aqui há GNRs!!!”…

Alínea b) – Navegação à vista em vez de navegação cartográfica

Para fazermos o nosso trabalho precisamos muitas vezes de nos candidatarmos a financiamentos. Preenchemos formulários, com campos bem definidos, que nos limitam o número de caracteres. E não só… Definimos objectivos. Estabelecemos indicadores de avaliação. Sabemos o que queremos e onde queremos chegar. Se chegarmos lá (onde?, que já me perdi…) temos o dinheirito para fazer as acções e beneficiar as populações-alvo.

As acções pressupõem o envolvimento das comunidades. O trabalho em proximidade. A construção conjunta de um projecto. A participação das pessoas. Como pode estar isto definido a priori? Se o caminho se vai fazendo, adaptando à medida das necessidades, dos sentires, dos afectos?

Pegue-se no exemplo dos projectos de inserção do rendimento mínimo. As famílias recebem o subsídio e acordam um plano de inserção, definido antes! Anula-se não só a individualidade de cada pessoa, como o seu contributo único para o todo social.

Contava uma das participantes que, num dia mais desassossegado, decidiu enviar para a União Europeia o relatório de execução de um projecto de acordo com o que efectivamente tinha acontecido, valorizando as estratégias e os resultados qualitativos, em total incumprimento com os requisitos do formulário exigido. Passaram dois anos e ainda ninguém pediu justificações… Alguém lê o que escrevemos?

Alínea c) – O Homem é um Animal Político

Exercemos o direito de voto. Elegemos representantes. Que definem os formulários que nos orientam a vida. A abstenção e os “brancos” sobem. Não queremos saber da política?

Assistimos hoje a um desaparecimento dos espaços de discussão. A construção de alternativas de pensamento reduz-se aos espaços criados pela política partidária. Como exercer activa e efectivamente a nossa cidadania? Como criar espaços de democracia participada?

A política faz parte de nós. Somos animais sociais. O nosso desenvolvimento acontece na comunicação com os outros. Como dar sustentabilidade a movimentos de participação cidadã? Uma das propostas é exigir o financiamento por parte da democracia representativa. Isto faz sentido? Não ficaremos reféns dos seus formulários?

Aproveitar os corredores de liberdade e dar expressão ao animal político que há em nós…

Disposições (Quase) Finais

Estas são as alíneas que me apetece escrever no momento. Conto convosco, resistentes da formatação social, para continuarmos o preenchimento deste Formulário A39. E já agora, a talho de foice: democracia participativa ou participada?

Destes dois dias de reflexão alucinante, retenho a expressão dita por alguém numa das tertúlias e que, suspeito, acompanhará o resto dos meus dias:

“Se não puderes ajudar, atrapalha. Afinal, o importante é participar!”


(Esta história é para o Rui d’Espiney, guru das reflexões socioeducativas. Que defende o “É proibido proibir”… Que descobriu, após profunda reflexão, suponho, ter dois tipos de preconceitos… E mais não escrevo porque I only say this once! Um Olé com Duende para ele! E que os corredores de liberdade continuem a acontecer nestes pachadroms onde nos vamos encontrando…)

7 comentários:

myrna disse...

Está lindo...!

E para completar vejam:
http://picasaweb.google.com/zetovar1/ICEINTEREQUIPAS?feat=email#slideshow/5361770616501499538

Prometo que mais tarde volto a este assunto...! Tenho de o digirir primeiro!
Já estava de férias...!

myrna disse...

Prometi voltar ao assunto depois de digeri-lo e aqui estou…!
Respondendo à tua questão – democracia participativa ou democracia participada – apetece-me brincar com as palavras: participando activamente vai resultar numa acção mais implicada, mais empenhada, mais comprometida, mais debatida, mais partilhada, mais apropriada, logo mais democrática! Já brincámos com estas palavras/estes conceitos (e respectivos significados) num outro projecto Democracy Learning, lembras-te?
Esta Interequipa foi semelhante a outras em que convivemos, em regime residencial, proporcionando-se um clima de grupo, de cumplicidade, de partilha, de escuta do outro mais profunda, induzindo momentos intimistas e, ao mesmo tempo, favorecendo o distanciamento, a descentração, a conscientização, manipulando conceitos e acções, dando mais sentido à nossa acção quotidiana…
Tenho saudades dos encontros do Nómada, em que se proporcionavam momentos de debates e cruzamentos de ideias, olhares, sentimentos e emoções e se descobriam/construíam cumplicidades na partilha de acções e de redes de pessoas, aproveitando sinergias e vontades…
O ICE é isso mesmo: a potencializ-acção de redes locais assentes nos afectos e nas vontades, nos sonhos e expectativas, que desocultam os tais corredores de liberdades, os tais pontos de luz, sobre os quais nos apoiamos para ir fazendo caminho, caminhando e acompanhando os outros e transformando-nos com eles...
Efectivamente, fico bastante preocupada com o processo acelerado com que os governos de Portugal (e não só) foram sendo contaminados (pela União Europeia), corrompendo, por sua vez, tudo e todos, com a lógica estandardizada dos formulários A38 de candidaturas a financiamentos… Visando controlar tudo e todos (daí que navegar à vista seja tão repudiado...) Isto vai arrebentar mais cedo ou mais tarde, ou seremos todos transformados em processos kafquianos sem sentido, esvaziados de vida, de emoções…qual soldadinhos de chumbo, à mercê de caciques loucos...
Mas, felizmente, vão surgindo, aqui e ali, redes sociais de pessoas que inventam os formulários A39 e/ou Z99 colocando grãos de areia nesta maldita engrenagem….
Felizmente, vão irrompendo aldeias/bairros que vão resistindo qual “aldeia gaulesa”!
Felizmente, existem Payitas, Sónias, Araquerar, Nómadas, o ICE's, etc… que teimam (ou melhor, persistem) em lutar pela liberdade e a justiça social, tecendo laços e construindo redes…

Deixo um repto: estou tentada a desafiar o recém participante nestas andanças: que tal achaste este movimento de desassossegados? Pela pinta, parece-me que são ainda pouco subversivos para o teu gosto? Ou estarei enganada? Hihihihi

catizzz disse...

Tudo isto é muito bonito mas continuamos a arriscar pouco. Sim, temos que comer e para isso convém que o ordenado caia no final do mês. Mas pergunto-me se reflectir fora do mainstream, partilhar esssas reflexões com outros que pensam de forma semelhante nos levará a algum lado a tempo... Parece-me que cada vez mais se impõe a acção e sobretudo a revolução. Mas para isso temos que arriscar mais. Até onde estaremos dispostos a ir?... eu própria não sei. Mas hei-de saber!

LB disse...

Assumindo que sou eu o “recém participante nestas andanças”, não quis deixar de responder a este desafio directo.

Esta experiência foi uma espécie de Módulo de Iniciação ao Desassossego.

Curioso e a tentar compreender a dinâmica da iniciativa, procurei escutar e ser receptor da partilha de experiências e vivências.
Não aguardei a chegada da Sra. da Gabardina pois, em alguns momentos, senti-me como se estivesse numa célula da Resistência. (Mas confesso que ainda olhei para os lados a ver quando chegaria o Morpheus com um comprimido azul e outro vermelho dando-me a escolher se queria entrar na Matrix!)

Foi agradável saber que há mais pessoas insatisfeitas, que questionam. Por outro lado, é lamentável a existência dos motivos que originam essa insatisfação. Constatar que de Norte a Sul do País e durante anos e anos e anos e anos… se continua a falar dos mesmos problemas:

Das parcerias que não são parceiras, ainda que o sejam no formulário L56; A39 ou o que lhe quisermos chamar, ou num qualquer protocolo. Parcerias que nem sequer sabem o que significa o conceito, alinhadas unicamente em interesses próprios.

Dos projectos que nada projectam ou então projectam mal e para onde são apenas projectados fundos. Projectos que terminam sempre com lindas projecções de números e estatísticas ao sabor colorido de belíssimos e animadíssimos gráficos de barras. Números. Sempre os números, esse grande indicador de sucesso!

Da burocracia, dos relatórios sobre relatórios, sobre pareceres de relatórios de pareceres que já não se sabe a quem pareceu e o que pareceu.

Dos estudos que estudam exactamente o mesmo que o outro estudou, que ninguém implementou até que o estudo seguinte vem dizer exactamente o mesmo e apresentar dados estatísticos para reforçar e corroborar as afirmações das problemáticas e depois surge o relatório e o parecer…

Quando no encontro foi dito que se iria falar de política, senti um formigueiro que me fez contorcer na cadeira. Apaziguei-me quando percebi que se tratava da política numa outra dimensão, naquela que está inerente ao ser humano. Apaziguei-me, mas permaneci inquieto. Não gosto de política, cada vez menos gosto menos. Um total desencanto. Mas não a posso ignorar, infelizmente, porque está intimamente interligada com a minha vida, com a vida de todos nós. E isso incomoda-me, na medida em que poucos colocam à frente interesses de poucos, em detrimento do interesse de todos, como seria esperado. Porque perdem demasiado tempo e gastam demasiadas energias em guerras e jogos de poder, que não priorizam os interesses daqueles que os elegeram. Porque nos tornam meros peões num jogo de xadrez em que não desejamos participar. Pelo menos eu dispensava.

Elegem-se governantes com votos de confiança, tanta vez traída, gorada, que só resta desconfiança.

Se uma expressão me ficou deste encontro em Azaruja, foi: “Corredores de Liberdade”.
Por isso, reservo este para mim e dispenso a política e, sobretudo, a politiquice.

E falando em “Corredores de Liberdade”, tentamos ser caminhantes pacientes nesses corredores ainda que, por vezes, gostássemos de ser corredores naqueles corredores, acelerando os processos de mudança. Não sei o que é preferível ou mais eficaz, se Revolução (que leve à Evolução) ou o jogo paciente de alinhar com o sistema para o fazer desalinhar, recorrendo às suas falhas e omissões. Não sei.

Também não sei qual é a minha “pinta”, mas vagueio entre a Crença e a Descrença; a Esperança e a falta dela. Como naquela lenda índia, depende de qual delas alimento. Por isso “tem dias” de encanto e de desencanto.

myrna disse...

Na mansidão de olhares atentos

Na violência das amarguras
Podem desmontar-se armaduras
Que resguardam segredos e mistérios.
Na imensidão dos olhares
Podem descobrir-se vontades
Que revelam sonhos e desejos.
No silêncio dos afectos
Podem encontrar-se generosidades
Que constroem amizades e paixões.
Na mansidão de olhares atentos
Empresta-se força e alento,
Que traçam rumos a frágeis existências.


Peças soltas no Puzzle do Mundo

Cantos, recantos e encantos do Mundo
Contos, recontos e encontros no Mundo
Escuta, palmilha, partilha e descobre
O Mundo é teu
Contas e recontas e desencontras-te com o Mundo
Cantas e recantas e desencantas-te do Mundo
Vidas com sentido
Vidas sentidas
Vidas consentidas
Sentidos de vida.
Abraça o Mundo e alcança-te
Enlaça-te na vida,
dança e descansa.
Pedaços soltos?
Junta as peças e
descobre-te em cada peça do puzzle do Mundo!
E boa viagem!


Mirna Val-do-Rio 2002

Estas linhas são para a Catizzz e para o LB, (sempre atentos ao Mundo, aos Outros e ao Sentido da Vida) porque uma coisa aprendi neste caminhar de meio século: são as relações tecidas com as pessoas, seja lá onde estivermos, que fazem a pequena E grande diferença, nos momentos mais improváveis e imprevisíveis! Aquele abraço :D :D :D

LB disse...

Obrigado pelo poema Myrna :)

Myrna disse...

E porque um dos temas abordados na Interequipas (e na Manifesta 2009) foi a "Intervenção nas periferias Urbanas", fiz um pequeno texto em prol dos agentes de intervenção social nos bairros ditos críticos.

Elogio ao artesão social das periferias urbanas

De acordo com os inúmeros estudos (*) realizados há uns 15 anos sobre os bairros sensíveis (ou críticos), isolaram-se algumas especificidades das novas profissões que se exercem nesses territórios:
- o "trabalhar nas margens", permite uma certa autonomia criativa;
- a "implicação pessoal", desoculta uma certa fibra militante;
- a "urgência da acção", surgida do confronto entre diferentes tempos e lógicas em acção (lógica do projecto de desenvolvimento social, lógica das instituições, lógica da acção imediata, lógica do problema a resolver, lógica do interveniente, lógica do utente, etc..);
- o “bricolage” e a “invenção”, surge do não funcionamento dos projectos “bem” programados, incitando a criação de soluções “negociadas” e “criadas” pelos novos profissionais;
- o "trabalho em rede" e necessidade de rentabilizar e articular olhares e soluções cruzadas;
- a "acção de proximidade", induz uma gestão adaptada às dificuldades concretas dos habitantes, potencializando todos os espaços informais de encontros;
- a "actividade de mediação", mobilizada nas tarefas relacionais comunicacionais de interface, exigidas na gestão das violências urbanas, na regulação dos conflitos de vizinhança, na reconstrução do tecido social.
Assim a acção destes novos profissionais de bairro vivem em tensão permanente:
- entre a proximidade e a distanciação;
- entre o militantismo e o profissionalismo;
- entre uma intervenção sectorial (cada instituição) e uma intervenção territorial (acção pública num determinado território).
A estruturação das profissionalidades destes novos profissionais de bairro organiza-se em torno:
- da construção de instrumentos (textos escritos que descrevem as experiências e as actividades, descrições, relatórios, diagnósticos, etc…);
- de espaços de experimentação (experiências pilotos, inovações, etc..);
- de múltiplas formações (que alargam e diversificam as formações iniciais, favorecendo uma reconstrução identitária social e profissional).

(*) Stébé, Jean-Marc (2005), La médiation dans les banlieues sensibles, PUF: Paris.