Preâmbulo
Confesso que tinha saudades de participar na Interequipas do ICE (http://www.iceweb.org/). Há quase dois anos que não me acontecia e apesar de entupida em trabalho e da minha presença lá significar rebentar com a agenda, bati o pé e ARZA!, pus-me a caminho de Azaruja, entre Évora e Estremoz. Não me arrependi…
As Interequipas são, para mim, momentos de convívio e reflexão sobre a animação comunitária e a democracia participativa, com pessoas desassossegadas de norte a sul do país. Numa altura em que a nossa democracia nos vai impingindo o Manual Social do Bem-Dizer e do Bem-Intervir, estes encontros lembram-me episódios do “Alô, Alô”, onde espero sempre que me apareça numa das tertúlias uma francesa de gabardine a sussurrar-me em tom conspirativo: I only say this once!
Todas as Interequipas têm um tema. Todas me deixam a conspirar sozinha, com os meus botões. Todas me fazem questionar o que faço e como o faço. Todas me deixam um ou outro momento marcado para a eternidade. Esta , que se realizou no sossego de um monte rural, em data que não posso especificar (para que os formulários das candidaturas cumpram os requisitos), teve como tema: “Para a Construção de um Pensamento Estratégico”.
Falou-se e muito sobre a “Cidadania no exercício da profissão” e sobre o “Desenvolvimento Local e Periferias Urbanas”. Como não me proponho nesta história a escrever o Formulário A38, deixo esse relatório para outro dia e outros espaços. O que escrevo nesta história é o que retenho enquanto profissional, mas sobretudo enquanto pessoa desassossegada e que teima em resistir à formatação social. Nesta história fica o Formulário A39…
Alínea a) – Fazer dos obstáculos, recursos
Diz-se que devemos aproveitar as sinergias dos intervenientes para construir projectos. Que devemos ter objectivos comuns. Evitar o conflito a qualquer preço. Rentabilizar recursos, é o lema das parcerias. Nas nossas cabeças isto pressupõe caminharmos juntos…
Algures no distrito de Portalegre, aqui há uns anos atrás, dinamizava-se um projecto de formação profissional com a comunidade cigana. Os homens ciganos frequentavam um curso de pintura, que lhes assegurava o rendimento mínimo. Impôs-se a concretização dos ensinamentos. Ora o posto da GNR local precisava de ser caiado. Foi-lhes proposto que os ciganos o pintassem. O comandante entrou em parafuso: “E as armas? A sala das armas?” Após intensas negociações, mais difíceis de gerir para o lado das forças de segurança, a iniciativa aconteceu. O posto foi caiado e o dia terminou com um convívio entre ciganos e GNRs. Pelo meio, o comandante a dizer, nervoso: “Mas aqui há ciganos!” E o responsável pelo projecto a responder-lhe: “Mas aqui há GNRs!!!”…
Alínea b) – Navegação à vista em vez de navegação cartográfica
Para fazermos o nosso trabalho precisamos muitas vezes de nos candidatarmos a financiamentos. Preenchemos formulários, com campos bem definidos, que nos limitam o número de caracteres. E não só… Definimos objectivos. Estabelecemos indicadores de avaliação. Sabemos o que queremos e onde queremos chegar. Se chegarmos lá (onde?, que já me perdi…) temos o dinheirito para fazer as acções e beneficiar as populações-alvo.
As acções pressupõem o envolvimento das comunidades. O trabalho em proximidade. A construção conjunta de um projecto. A participação das pessoas. Como pode estar isto definido a priori? Se o caminho se vai fazendo, adaptando à medida das necessidades, dos sentires, dos afectos?
Pegue-se no exemplo dos projectos de inserção do rendimento mínimo. As famílias recebem o subsídio e acordam um plano de inserção, definido antes! Anula-se não só a individualidade de cada pessoa, como o seu contributo único para o todo social.
Contava uma das participantes que, num dia mais desassossegado, decidiu enviar para a União Europeia o relatório de execução de um projecto de acordo com o que efectivamente tinha acontecido, valorizando as estratégias e os resultados qualitativos, em total incumprimento com os requisitos do formulário exigido. Passaram dois anos e ainda ninguém pediu justificações… Alguém lê o que escrevemos?
Alínea c) – O Homem é um Animal Político
Exercemos o direito de voto. Elegemos representantes. Que definem os formulários que nos orientam a vida. A abstenção e os “brancos” sobem. Não queremos saber da política?
Assistimos hoje a um desaparecimento dos espaços de discussão. A construção de alternativas de pensamento reduz-se aos espaços criados pela política partidária. Como exercer activa e efectivamente a nossa cidadania? Como criar espaços de democracia participada?
A política faz parte de nós. Somos animais sociais. O nosso desenvolvimento acontece na comunicação com os outros. Como dar sustentabilidade a movimentos de participação cidadã? Uma das propostas é exigir o financiamento por parte da democracia representativa. Isto faz sentido? Não ficaremos reféns dos seus formulários?
Aproveitar os corredores de liberdade e dar expressão ao animal político que há em nós…
Disposições (Quase) Finais
Estas são as alíneas que me apetece escrever no momento. Conto convosco, resistentes da formatação social, para continuarmos o preenchimento deste Formulário A39. E já agora, a talho de foice: democracia participativa ou participada?
Destes dois dias de reflexão alucinante, retenho a expressão dita por alguém numa das tertúlias e que, suspeito, acompanhará o resto dos meus dias:
“Se não puderes ajudar, atrapalha. Afinal, o importante é participar!”
(Esta história é para o Rui d’Espiney, guru das reflexões socioeducativas. Que defende o “É proibido proibir”… Que descobriu, após profunda reflexão, suponho, ter dois tipos de preconceitos… E mais não escrevo porque I only say this once! Um Olé com Duende para ele! E que os corredores de liberdade continuem a acontecer nestes pachadroms onde nos vamos encontrando…)
Confesso que tinha saudades de participar na Interequipas do ICE (http://www.iceweb.org/). Há quase dois anos que não me acontecia e apesar de entupida em trabalho e da minha presença lá significar rebentar com a agenda, bati o pé e ARZA!, pus-me a caminho de Azaruja, entre Évora e Estremoz. Não me arrependi…
As Interequipas são, para mim, momentos de convívio e reflexão sobre a animação comunitária e a democracia participativa, com pessoas desassossegadas de norte a sul do país. Numa altura em que a nossa democracia nos vai impingindo o Manual Social do Bem-Dizer e do Bem-Intervir, estes encontros lembram-me episódios do “Alô, Alô”, onde espero sempre que me apareça numa das tertúlias uma francesa de gabardine a sussurrar-me em tom conspirativo: I only say this once!
Todas as Interequipas têm um tema. Todas me deixam a conspirar sozinha, com os meus botões. Todas me fazem questionar o que faço e como o faço. Todas me deixam um ou outro momento marcado para a eternidade. Esta , que se realizou no sossego de um monte rural, em data que não posso especificar (para que os formulários das candidaturas cumpram os requisitos), teve como tema: “Para a Construção de um Pensamento Estratégico”.
Falou-se e muito sobre a “Cidadania no exercício da profissão” e sobre o “Desenvolvimento Local e Periferias Urbanas”. Como não me proponho nesta história a escrever o Formulário A38, deixo esse relatório para outro dia e outros espaços. O que escrevo nesta história é o que retenho enquanto profissional, mas sobretudo enquanto pessoa desassossegada e que teima em resistir à formatação social. Nesta história fica o Formulário A39…
Alínea a) – Fazer dos obstáculos, recursos
Diz-se que devemos aproveitar as sinergias dos intervenientes para construir projectos. Que devemos ter objectivos comuns. Evitar o conflito a qualquer preço. Rentabilizar recursos, é o lema das parcerias. Nas nossas cabeças isto pressupõe caminharmos juntos…
Algures no distrito de Portalegre, aqui há uns anos atrás, dinamizava-se um projecto de formação profissional com a comunidade cigana. Os homens ciganos frequentavam um curso de pintura, que lhes assegurava o rendimento mínimo. Impôs-se a concretização dos ensinamentos. Ora o posto da GNR local precisava de ser caiado. Foi-lhes proposto que os ciganos o pintassem. O comandante entrou em parafuso: “E as armas? A sala das armas?” Após intensas negociações, mais difíceis de gerir para o lado das forças de segurança, a iniciativa aconteceu. O posto foi caiado e o dia terminou com um convívio entre ciganos e GNRs. Pelo meio, o comandante a dizer, nervoso: “Mas aqui há ciganos!” E o responsável pelo projecto a responder-lhe: “Mas aqui há GNRs!!!”…
Alínea b) – Navegação à vista em vez de navegação cartográfica
Para fazermos o nosso trabalho precisamos muitas vezes de nos candidatarmos a financiamentos. Preenchemos formulários, com campos bem definidos, que nos limitam o número de caracteres. E não só… Definimos objectivos. Estabelecemos indicadores de avaliação. Sabemos o que queremos e onde queremos chegar. Se chegarmos lá (onde?, que já me perdi…) temos o dinheirito para fazer as acções e beneficiar as populações-alvo.
As acções pressupõem o envolvimento das comunidades. O trabalho em proximidade. A construção conjunta de um projecto. A participação das pessoas. Como pode estar isto definido a priori? Se o caminho se vai fazendo, adaptando à medida das necessidades, dos sentires, dos afectos?
Pegue-se no exemplo dos projectos de inserção do rendimento mínimo. As famílias recebem o subsídio e acordam um plano de inserção, definido antes! Anula-se não só a individualidade de cada pessoa, como o seu contributo único para o todo social.
Contava uma das participantes que, num dia mais desassossegado, decidiu enviar para a União Europeia o relatório de execução de um projecto de acordo com o que efectivamente tinha acontecido, valorizando as estratégias e os resultados qualitativos, em total incumprimento com os requisitos do formulário exigido. Passaram dois anos e ainda ninguém pediu justificações… Alguém lê o que escrevemos?
Alínea c) – O Homem é um Animal Político
Exercemos o direito de voto. Elegemos representantes. Que definem os formulários que nos orientam a vida. A abstenção e os “brancos” sobem. Não queremos saber da política?
Assistimos hoje a um desaparecimento dos espaços de discussão. A construção de alternativas de pensamento reduz-se aos espaços criados pela política partidária. Como exercer activa e efectivamente a nossa cidadania? Como criar espaços de democracia participada?
A política faz parte de nós. Somos animais sociais. O nosso desenvolvimento acontece na comunicação com os outros. Como dar sustentabilidade a movimentos de participação cidadã? Uma das propostas é exigir o financiamento por parte da democracia representativa. Isto faz sentido? Não ficaremos reféns dos seus formulários?
Aproveitar os corredores de liberdade e dar expressão ao animal político que há em nós…
Disposições (Quase) Finais
Estas são as alíneas que me apetece escrever no momento. Conto convosco, resistentes da formatação social, para continuarmos o preenchimento deste Formulário A39. E já agora, a talho de foice: democracia participativa ou participada?
Destes dois dias de reflexão alucinante, retenho a expressão dita por alguém numa das tertúlias e que, suspeito, acompanhará o resto dos meus dias:
“Se não puderes ajudar, atrapalha. Afinal, o importante é participar!”
(Esta história é para o Rui d’Espiney, guru das reflexões socioeducativas. Que defende o “É proibido proibir”… Que descobriu, após profunda reflexão, suponho, ter dois tipos de preconceitos… E mais não escrevo porque I only say this once! Um Olé com Duende para ele! E que os corredores de liberdade continuem a acontecer nestes pachadroms onde nos vamos encontrando…)