“A caixa que mudou o Mundo”. Creio que assim foi designada a Televisão. Se não foi, peço desculpa pelo erro. Que não será grave se considerarmos que não se limitou a mudá-lo mas também, e cada vez mais, a moldá-lo.
Sempre gostei de televisão e ainda gosto. Sou um consumidor deste produto no qual ainda reconheço virtudes e potencialidades. E porque sou um lírico sempre achei que este magnífico meio de comunicação tinha o grato dever e a responsabilidade de cumprir com uma tríade essencial: Informar; Educar e Entreter. E qualquer uma delas, com qualidade. Com a qualidade e respeito que merecem as pessoas que pagam impostos para lhe aceder.
Mas afinal, também se descobriu que é um magnífico meio de moldar, influenciar, desinformar e entreter. Entreter é importante. Quanto mais entretenimento melhor e de preferência, o mais estupidificante possível. Um pouco à laia da máxima romana “Pão e Circo”. E quanto menos pão, mais circo para que se esqueça a fome. Reforce-se o número de palhaços, acrobatas, malabaristas e ilusionistas.
Ah, claro!, não esquecer os gladiadores e as sangrentas batalhas que punham ao rubro a multidão, quanto mais rubro fosse o espectáculo e mais rubra ficasse a areia da arena. Mas nós já não estamos no império romano. Estamos no século XXI. Somos diferentes.
- Somos diferentes? - Pergunto
- Não sei – Respondo
Olhando para os noticiários interrogo-me. Após o rol de desgraças: assaltos, falências, desfalques, crise (de preferência acompanhados de um rio de sangue), é dado tempo de antena a notícias assaz importantes para a nossa vidinha: as operações plásticas dos “famosos” (que nem sei porque o são, nem qual o seu contributo para a sociedade, digno de registo); os escândalos da coroa britânica; e futebol.
E, correndo o risco de imitar os telejornais, destaco o futebol! Também aqui lhe dou o tempo de antena que não se gasta com as referências positivas, passadas quase em rodapé. Podia ficar aqui a enunciar um rol infindável, mas depois não tinha oportunidade d escrever acerca da nova namorada do Cristiano Ronaldo e a questionar-me se trocou de roupa interior. E se a Lucy afinal namora com ele ou não. E dos milhares de euros que os jogadores ganham, face aos míseros tostões amealhados numa vida, contados para pagar as contas. Marx esqueceu-se de acrescentar o futebol à sua lista de opiáceos.
Bom, estou a ser injusto. Também se fala dos pobrezinhos. Aliás, devassa-se a história dos pobrezinhos. Estava a ser injusto. A quantidade de vezes que limpei as lágrimas com as Tardes de uma e com a Praça de outros, a assistir à vida dos coitados que se não fosse a benévola televisão ainda estavam na rua da amargura.
Tudo assente numa lógica de audiência, medida em “share”, “rattings” e outras designações semelhantes que se traduzem apenas em: dinheiro e poder. Como na Roma Imperial.
Na Bela Vista, aconteceu o mesmo. Gladiadores, sangue. Circo. Circo em directo, acompanhado por jornalistas que corriam esgazeados avenida acima, avenida abaixo, sempre seguidos por ofegantes operadores de câmera que já reviravam os olhos de saturação. Tudo por um furo. Tudo por mais um apontamento que nem digno de registo seria, mas nunca se sabe.
Pessoas que com eles mantêm uma relação de Amor/Ódio. Querem-nos lá e querem-nos fora de lá. Como um abutre que até dá jeito para comer as carcaças dos animais mortos, mas por quem não sentimos simpatia e afugentamos depois.
Mas apesar de tudo, são o seu passaporte para uns segundos de notoriedade, porque apareceram a espreitar na caixa. É o quid pro quo que se estabelece. Dou-te essa hipótese e tu dás-me um “furo” e uma entrevista.
E custou-me ver jornalistas em directo. Ao vivo e a cores. Custou-me porque em tempos quis ser um deles. E agora, aquela imagem, ali, afigurou-se-me patética. Desproporcionada. E mais desiludido fiquei quando li, e vi as reportagens. E mais desiludido fiquei por o único jornalista que se deslocou ao bairro azul durante a acção de limpeza que estava a decorrer, envolvendo crianças, moradores, não tivesse tido a mínima curiosidade jornalística de tentar perceber o que era.
Isso sim, seria um “furo”. Paredes meias com o aparato, a referência positiva num bairro sobre a luz da ribalta. Mas não interessava. Não estava sobre a luz das labaredas dos contentores e carros incendiados e dos cocktails Molotov. Talvez se devesse ter incendiado o lixo...
Afinal, os “bons da fita” não têm destaque. E o “furo” jornalístico na caixa que mudou o Mundo apenas serve para nos direccionar o olhar para onde convém. Mas não passa de um “furo na caixa”, que não chega a ser uma janela sobre o horizonte.
Mas eu sou um lírico. Apaixonado pela máquina de escrever, pelo cigarro ao canto da boca enquanto transcrevia do bloco as notas de estenografia. O cartão onde se podia ler “Press”. Quis ser jornalista, quando era pequeno. Acreditava que sê-lo implicava ter em si a curiosidade do Mundo e de tudo fazer para a satisfazer de forma isenta e empenhada. Uma espécie de paladino que de tudo faria para apurar factos e trazê-los, tal e qual eram. Talvez ainda aconteça. E lamento que muitos jornalistas, tão líricos quanto eu, se sintam frustrados por não o poderem ser. Obrigados a ser gladiadores, sujeitos ao Circo Mediático. A esses, fica o meu pesar.
E porque se fala em caixa, recorda-me uma outra, que ao ser aberta libertou todos os males no Mundo. No fundo permaneceu apenas a Esperança.
LB
http://saladofundo.blogspot.com/
1 comentário:
Luis, além de um poeta que prosea lindamente, és, sem dúvida, um excelente jornalista, antropólogo, anónimo talvez ainda, como tanta gente anónima que faz avançar este país, resistindo nos bastidores das "cenas" que se tornam espectáculos, resistindo à mediocridade, à devassidão pública da vida privada, à arrogância de quem detém o poder... Fazes parte, sem dúvida, desse rol de "Bichos Raros" (na versão Catizz.... Não desistas... melhor dizendo, não desistemos...
Enviar um comentário