“A minha filha mais nova foi internada quando tinha apenas 24 dias de idade. (…) A raiva irracional, a explosão de sentimentos nós guardamos bem cá dentro. Quando tudo acabou em bem, o meu homem disse-me: “um dia, sentamo-nos e choramos por isto, agora não temos tempo.” Nunca o fizemos. (…) Para onde foi o meu choro? Para onde foi o meu grito? A lado nenhum. Povoam os meus piores pesadelos e vivem cá dentro. (…) Deviam pensar em colocar famílias ciganas na gestão dos hospitais, no acolhimento aos doentes, no apoio às famílias. Seria um SNS mais humanizado, isso de certeza.”
Retirado de um jaleo de Catizzz em “A minha família cigana”, uma história penada em 14 de Outubro de 2008. http://pachadrom.blogspot.com/2008/10/minha-famlia-cigana.html
A dor sentida de dentro para fora. Vivida de fora para dentro. Ao contrário…
Perante a iminência da morte, ensinaram-nos que temos de ser fortes. O Outro tem de ser combativo. E precisa de ler isso nos nossos olhos. Para resistir. Para viver. Precisa de acreditar em nós. Que nós acreditemos nele. E por isso metemos a dor cá dentro. Ao contrário…
Morreu-me uma pessoa. Especial para mim. E para muitos outros. Morreu. De forma inesperada e violenta. Como se estivéssemos a ver uma longa-metragem, com o dedo a pressionar o botão do forward: Fim! Já cá não está. Sem que tivéssemos aquela oportunidade de dizer “mas a que propósito?”…
E o que me apeteceu fazer nos dias em que esteve doente foi chorar, gritar, praguejar o dicionário completo do melhor calão português, partir coisas, arrancar os cabelos… E não pude fazer isso. Porque o Outro tem de ser combativo e acreditar em nós… Porque foi assim que nos ensinaram.
A frase mais repetida naqueles dias tristes era: “viver um dia de cada vez”. Uma frase que ouço repetidamente dita pelos ciganos. Que têm mudado muito os seus usos e costumes. A sua maneira de estar perante a doença e a morte dos seus familiares tem-se mantido como das mais significativas tradições.
Os ciganos regem-se por determinados princípios básicos, entre eles o respeito e a veneração pelos mortos, o não abandono dos doentes. Não confiam no sistema de saúde, com a mesma confiança que depositam na incerteza com que vivem o dia-a-dia. Um dia de cada vez…
O internamento hospitalar é de um grande sofrimento para os ciganos. Não só porque os afasta da pessoa doente, mas também porque corta com a rotina familiar. E a comunidade cigana organiza-se e estrutura-se pelos laços familiares. Pelos afectos.
Quando uma pessoa cigana é internada num hospital, toda a comunidade se multiplica em manifestações de afecto pelo doente. Deslocam-se ao hospital e aí permanecem. Invadem o hospital a qualquer hora, em desrespeito pelo horário estabelecido, porque assim demonstram ao doente o seu total apoio e solidariedade, que nenhuma norma é capaz de conter.
Ficam próximos, para que o doente sinta a sua presença e saiba que não está só. Levam comida. Desconfiam da comida do hospital. E nunca levam flores. As flores são um símbolo de morte.
Hoje há uma outra compreensão destas questões pela comunidade hospitalar, questões importantes para todos os doentes e não só para os ciganos. Alteraram-se regimes de visitas, permitem-se refeições fora das dietas hospitalares. Ainda assim, continuamos a não ver mediadores ciganos nos hospitais que facilitem, que expliquem, que criem pontes de comunicação entre culturas. Entre pessoas. E a comunicação existe nos dois sentidos...
Com os mediadores, é possível não só gerir conflitos entre as famílias e o pessoal hospitalar, como sensibilizar a comunidade cigana para os problemas de saúde. Não é fácil explicar-lhes a importância da vacinação ou a necessidade de ir ao médico quando as crianças estão com gripe.
Não basta ver a pessoa e a família. Temos de olhar também para sua cultura, que se manifesta quer na expressão dos seus cuidados ao doente, mas também na forma como entendem o sentido da vida. Para um cigano não existe uma filosofia de morte, mas um esquecimento propositado da sua possibilidade. Nascem para a vida e não para morrer. Recorrem aos serviços de saúde em situações limite. Nunca pensam na morte. Não se fala do assunto e muito menos do morto.
Por isso, a notícia da morte de um cigano é recebida com grande choque e grande desgosto. Os velórios e funerais são exuberantes e dramáticos. A dor é exteriorizada através de gritos e choros. Chegam a rasgar as roupas...
Acreditam numa vida para lá da morte, que o mundo dos mortos está acima da dos vivos. Os mortos têm poderes sobre os vivos e por isso respeitam-nos. Acreditam que o espírito do morto continua a existir e que pode voltar, provocando situações incómodas e prejudiciais, através de doenças, sonhos e visões.
Os funerais processam-se de acordo com o culto religioso que praticam. Não se poupam a despesas, o que pode provocar algumas situações aflitivas nas famílias com baixos recursos económicos. Compram as mais belas flores e as velas são inúmeras.As crianças participam nos rituais fúnebres para aprenderem e darem continuidade às tradições. Durante um período de pelo menos quinze dias não vão à escola. Este facto tem colocado algumas questões junto da comunidade educativa. É preciso explicar e explicar o significado do luto junto de professores, educadores, ministério... O que tem feito o Nómada tantas e tantas vezes... Onde estão os mediadores?
Nos ciganos, após a morte de um familiar há como que um corte com o defunto. Muda-se a mobília da casa, às vezes deita-se mesmo fora os móveis, não se exibem fotografias. A festa, a música acaba. Não se liga a televisão. Os casamentos e baptizados ficam adiados ou realizam-se longe da família. Não se fala do morto.
E quantas vezes, nós que trabalhamos com crianças e famílias ciganas, adaptámos actividades para respeitar um luto? Lembro-me de uma situação angustiante. Numa exposição do Espaço Aberto, há muitos anos, um álbum de fotografias para quem o quisesse ver. As famílias ciganas presentes. Duas chaborilhas indignadas, em profunda consternação, a ameaçar que chamavam a família, porque tinhamos incluído uma determinada fotografia no álbum. Eu, atónita, sem perceber... A perguntar porquê. Elas a explicarem. A fotografia foi retirada. As ameaças acabaram, os ânimos sossegaram. A exposição aconteceu, até ao fim. Às vezes, basta fazer a pergunta...Como em todos os processos de luto, seja qual for a cultura ou credo, o luto é um processo pelo qual se procura uma nova rotina, uma nova dinâmica, uma nova vida. A forma que assume e o tempo que dura é que varia. De religião para religião, de cultura para cultura, de família para família, de pessoa para pessoa.
O luto para as pessoas ciganas varia em função do grau de parentesco, nunca sendo menos de quinze dias e podendo ir até ao fim da vida, no caso das viúvas. Durante o luto, não se lavam, a barba e o cabelo crescem, no caso dos homens, cortam o cabelo, símbolo de sensualidade, no caso das mulheres. A roupa é negra. Os homens usam chapéu. As mulheres, lenço.
O ritual de morte e de luto é muito vivido pelos ciganos, o que os coloca perante situações complexas. São estes rituais que contribuem tantas vezes para a construção de inúmeros esterótipos e preconceitos. São estes rituais que lhes estruturam as rotinas, mas que simultaneamente os colocam perante situações de dificuldade económica e de incompreensão pela sociedade dita "maioritária".
Hoje, algumas coisas mudaram. Os jovens ciganos já não seguem com estrito rigor alguns dos rituais. Era o que me dizia uma viúva, uma vez, mostrando-me por debaixo do pano preto, o cabelo rapado. Os hábitos de higiene têm sofrido alterações. Não mudam de roupa durante o luto, mas tomam banho.
Ainda assim, na sua essência, a forma como encaram a vida e a morte mantém-se. E nós, que trabalhamos e convivemos e construímos redes de afectos com as pessoas ciganas, continuamos a alterar actividades, continuamos a retirar fotografias. Porque o respeito e a compreensão pelo sentir do Outro é mais importante...Morreu-me uma pessoa. No dia em que morreu, não me apeteceu tomar banho, nem ouvir música. Parecia-me uma falta de sensibilidade, como se estivesse a ir para uma festa e não para um velório. E percebi... Não é porque considerasse que incomodava o morto. Foi porque me incomodava a mim... Pensar e fazer o que faço e penso todos os dias. Porque era um dia diferente.
Morreu-me uma pessoa. E o que me apetece fazer é chorar, gritar, praguejar o dicionário completo do melhor calão português, partir coisas, arrancar os cabelos… E não consigo fazer isso. Porque não me ensinaram como fazer isso… Mas na nossa cultura podemos olhar fotografias, lembrar e falar dos mortos. Que é o que faço agora.
Morreu-me uma pessoa terna. E eu pensava muitas vezes que ela deveria ser mais firme em tantas coisas… Que é o que costumamos pensar das pessoas ternas. E agora o que me lembro mais dela é da TERNURA… No que dizia e no que fazia.
E recordo tantas coisas desde que a conheci. As Festas do Avante, os Natais, as passagens de ano. Os momentos alegres, os momentos tristes. As muitas vezes que fui injusta e impaciente. As conversas difíceis sobre a vida de cada uma… Sou a “segunda mãe” da filha dela, a “tia emprestada” do filho mais novo… A casa sempre aberta. Disponível para nos receber. Como as casas ciganas. Fossemos quantos fossemos! E às vezes éramos muitos… A preocupação connosco, estamos bem?
E as festas de pijama entre primos. Os telefonemas, para lá e para cá, para ver se está tudo bem, se os lacorilhos ainda não partiram a mobília… E do outro lado do telemóvel, a música enquanto não me atendia: “O Mundo ao Contrário”, dos Xutos, a lembrar concertos na Festa. E eu a brincar, a dizer-lhe: “não atendas, estava a curtir a música”. Ela a rir…
… “Se gosto de ti, se gostas de mim, se isto não chega, tens o mundo ao contrário". E não chegou… E o mundo está mesmo ao contrário!
(Vou fazer como os ciganos e não te digo o nome. Mas esta história é para Ti. Se o deus católico existir, estás lá em cima e sabes que vai correr tudo bem. Temos uma família cigana, estamos camelados uns nos outros. Se acontecerem reencarnações, reencarna depressa e vem para ao pé de nós, que temos saudades…)