Costumo contar a história do Espaço Aberto dizendo que tudo começou com um frigorífico. Em 1998, duas educadoras pediram-nos ajuda para comprar um pequeno frigorífico para guardar os lanches das crianças que frequentavam o Centro de Animação Infantil e Comunitário da Bela Vista (CAIC).
As dinâmicas geradas pelo CAIC com as famílias e com a comunidade, de “portas abertas” em acolhimento permanente, fizeram daquela instituição um espaço privilegiado de entendimentos entre educadoras, crianças e famílias. Não é por isso de estranhar que fosse sobretudo a comunidade cigana a procurar o CAIC, confiando a educação das suas crianças às educadoras que lá estavam. As mães a ficarem mais um bocadinho, a pedirem ajuda para decifrarem os códigos das cartas que recebiam pelo correio, enviadas pelas entidades que nos “organizam” a vida. As mães a ficarem na conversa, antes de voltarem para a rotina do “amanhar da casa”.
Neste entrelaçar de relações que perduravam no tempo, os irmãos mais velhos iam ficando pelo CAIC, depois das aulas. E por isso, quando nos pediram ajuda para comprar um frigorífico, as educadoras pediram-nos também ajuda para encontrar respostas para estas crianças, que não tendo idade pré-escolar, continuavam a exigir um espaço de brincadeiras e afectos. Nascia o Espaço Aberto.
E com a então estagiária de animação sócio-cultural Teresa, começámos a dinamizar actividades, a conhecer as crianças, a perceber a teia de relações familiares. Começámos por partilhar o espaço com o CAIC. Em poucos meses conseguimos um espaço próprio para as actividades, mas sempre de mãos dadas com o CAIC. Recordo desta altura o meu assombro com a facilidade com que crianças de culturas diferentes conviviam num mesmo espaço, gerindo territórios e conflitos. Subtilmente. A exclusão entre uns e outros, gerida com mestria. A presença de todos mas separados. A multiculturidade ali. A transculturalidade ausente.
A descoberta de um sem número de crianças que com 9, 10 anos não frequentava a escola, fez com que um grupo de pessoas apresentasse em 1999 um Projecto, financiado pela União Europeia, que consistia num centro comunitário de tempos livres, mas com um funcionamento assente não numa inscrição, mas na vontade de participar. Associado a este centro, uma turma de currículos alternativos de 1º ciclo, alunos que aprenderiam as competências básicas escolares fora da escola, enquanto brincavam.
Este caminho foi construído com o Instituto das Comunidades Educativas (ICE) e com a Myrna, com o CAIC e com as educadoras Cristina e Teresa, com as professoras Cristina, Dores e Clara e, pasme-se!, com o nosso Ministério da Educação, pelos então CAE e Recorrente (e a magia da professora Conceição a abrir a caverna do Ali Babá). Quando no início de Setembro de 1999, andávamos a contactar as famílias para inscrever os alunos, uma menina cigana responde ao meu desafio para integrar a turma de uma forma inesquecível: “Ayyy… Então pra quêi? O mundo vai acabar no ano dois mili!!!”. Ainda hoje procuro a resposta para lhe dar…
Mas o mundo não acabou e durante um ano lectivo, enquanto decorriam actividades de tempos livres, uma turma de sete alunos (6 de etnia cigana), rapazes, aprendia a ler e a escrever. Para tirar a carta de condução, uns, para terem uma vida melhor, outros. Recordo o Floriano, teria os seus 10, 11 anos, tinha largado a escola há muito. Não sabia uma letra. Em dois meses, aprendeu a ler e a escrever. Hoje, já casou e tem filhos. Ter passado pelo Espaço Aberto não o impediu de ir para a venda, ganhar a vida. Mas os filhos do Floriano, quem sabe? E hoje, quando o encontro de tempos a tempos, o respeito mútuo, a inscrição de uma experiência diferente na vida de cada um de nós. Ele a dizer baixinho aos familiares, nas filas do ferry, “a ela não vendas, foi minha professora”. E eu a falar dele em todos os colóquios e encontros quando me convidam a botar discurso sobre estas coisas da Educação.
E os ateliês num novo espaço. Mais distante do CAIC, mas o cordão umbilical a resistir ao corte. Os ateliês de expressão dramática, de sombras chinesas, de malabarismo, de pasta de papel… As festas nas escolas e os chaborilhos a ensinarem os lacorilhos. A serem valorizados por aquilo que sabem fazer. As festas comunitárias… As famílias a ajudarem a construir o espaço. A serrarem prateleiras, a pintar salas. A fazer bolos. O descobrir de uma comunidade. Solidária quando se sente envolvida. E os animadores a (re)inventarem a animação comunitária. A Catarina, a Ana, o Marco, o Cachucho… E o Ivo, homem dos sete instrumentos, disponível para tudo. O noivo, segundo a vontade da Mima.
Foi uma experiência difícil mas para uma vida. Eu, sem perceber fosse o que fosse de “culturas institucionais”, movida apenas por um Duende que me fazia acreditar que aquele era o caminho. Em 2000, os assaltos às gasolineiras e o “caso Lídia Franco” põem o Bairro Azul da Bela Vista na Comunicação Social. Pelos piores motivos. O estigma, o estereótipo, a minarem a auto-estima de uma comunidade já de si fragilizada pela exclusão. Começámos a ter problemas com a vizinhança, não cigana. O espaço constantemente vandalizado. Os preconceitos e a xenofobia a regressarem em força. Fechámos as instalações. Não fazia sentido continuar contra a vontade da comunidade envolvente.
Abandonámos as instalações mas não abandonámos a ideia. Não temos um espaço, fazemos na rua! E começámos a fazer actividades no meio dos pátios dos Bairros. No chão. Com quem aparecesse. E apareceram muitos! Nunca tinha imaginado existirem tantas crianças e jovens na rua, sem ocupação. Fizemos actividades no Bairro Azul, numa altura em que se ouvia na televisão que era impossível lá entrar! Dominado pelos gangs, diziam…
Construímos uma baleia gigante em esponja, símbolo de uma nova etapa. Andou connosco para todo o lado, a dizer que continuávamos ali, até apodrecer. Fizemos Capoeira. Fizemos música com latas e contentores, pedinchados na construção civil. Contámos histórias a quem nos quis ouvir e construímos puzzles que se viam do céu. Com o Domingos Pedro, a Vera, o Pedro, a Patrícia e a Andreia. Com o Teatro do Elefante, a PédeXumbo, os Blábláblá. A Telma de dossier na mão a sinalizar os presentes e a descobrir “bairros” até então invisíveis. A Filipa a embrulhar saquinhos de bolachas e a esconder tesouras nos bolsos, a descobrir-se…
E o Chico. Uma criança com uma história de vida muito difícil. Traumática. A dar-nos que fazer, a dar sentido ao estarmos ali: foi esta a profissão que escolhemos! A Ana Maria a desdobrar-se em telefonemas para procurar soluções. O David a aprender a ser Professor. A ter um teste à altura e a passar com Bom Mais! A criarmos uma rede de entendimentos com o professor, o Amílcar. O Chico, a testar o funcionamento das Instituições. Estas a chumbarem…
E com a Animação de Rua o caminho da transculturalidade a desenhar-se em frente dos nossos olhos, no chão sujo dos Bairros da Bela Vista. As diferentes culturas a partilharem saberes e sentires. No meio da rua. Pela dança. Pela música. Um Espaço Aberto a todos. E para todos.
Em 2002, o financiamento acabou. Acabou o Espaço Aberto? Não. Os Senhores que Mandam no Mundo ainda tinham qualquer coisita para dar. Fizemos obras na antiga escola primária do Bairro. Preparámos o espaço para nos acolher. O Espaço Aberto e o CAIC juntos, finalmente. Num espaço com laboratório de fotografia, sala multimédia, ludoteca, sala de dança, tabela de basquetebol… Em Outubro de 2005, o Mundo era nosso! E ninguém nos tinha dito que ia acabar, vítima de alguma conjugação cósmica manhosa…
A Educação para a Cidadania, num espaço com condições para a acolher. A Participação Cidadã, num espaço com condições para a promover. Sem inscrições. As crianças e jovens a participarem pela vontade de participar. E os ciganos, mais uma vez, a encontrarem naquele espaço, um espaço deles. De acolhimento. De entendimento. De afectos e de comunicação. E a transculturalidade a espreitar. Os diferentes sentires e saberes a serem escutados e incluídos. Pela mão da Débora, da Susana, do Pedro, do Miguel, do Luís, do Vítor, da Maria do Céu, da Myrna, dos Momentos Mágicos, de estagiários e voluntários (sei o trabalho que desenvolveram mas não sei o nome de todos, por isso não escrevo de nenhum, e peço desculpa por isso).
É neste contexto que nascem as Gipsy Stars, contadas na história anterior. São lançadas as sementes para um outro trabalho com as famílias. A educação das meninas ciganas. A emancipação da mulher cigana. Pontes construídas. Espaços de entendimento. Através da Fotografia trabalhámos a questão de género. Fizemos uma exposição. As mulheres a dizerem o que pensam. Para toda a gente ouvir. E reflectir.
A Educação para a Cidadania e a Revolução Portuguesa. O que significa isto para cada cultura. Para uns a liberdade de poder dizer o que se pensa. Para outros, o fim de uma guerra colonial. Para os ciganos, a liberdade chega devagarinho… E esta não é a Cidadania que se aprende nas escolas. Não é o saber do Hino. Não é o reconhecer da Bandeira. Não é o conhecimento dos Direitos e Deveres, papagueados pela Constituição.
É a Cidadania do vivido e reflectido. Do questionar permanente. O que é isto para cada um de nós? O que é para os outros? Como se constrói? O que posso fazer eu para mudar o espaço que me rodeia ou o outro lado do planeta? O que me podem exigir a mim? A Educação para a Cidadania, construída e reflectida a partir do vivido, pela comunicação com o Outro, pelo afecto. Pelo INFORMAL.
Em 2007, o CAIC acabou. Sinal de um sistema educativo em mudança. O burburinho de que acabariam os centros de tempos livres a tornar-se ensurdecedor. As crianças cada vez mais ocupadas nas escolas. Fechadas. Em actividades, atrás de actividades. Formativas. Formais. A explodirem nos recreios de 15 minutos. Em escolas que não foram pensadas para dinamizarem esta diversidade de actividades. Os recursos humanos insuficientes para gerirem aulas, actividades de enriquecimento curricular, recreios, apoios ao estudo…
Os professores a desdobrarem-se em tarefas que ultrapassam, e muito, aquela que é a sua missão, aquele que é o seu horário de trabalho… A motivação, a energia… Onde estão? A manifestarem-se contra. Cento e vinte mil… Enfim! Se calhar tinham de ir todos para que o Ministério considerasse válidas as suas reivindicações. Quem faltou?
E os ATLs a fecharem, os centros comunitários a procurarem estratégias de sobrevivência. Em nome de quê? Para quê? Para que crianças de 6 anos possam pronunciar com o melhor sotaque de Yorkshire “I like yellow”? E a Educação para a Cidadania, onde fica? O conhecer o Outro? Ou nós agora conhecemos o Outro pelos manuais escolares? E o Mundo? Conhecemos o Mundo através de um link no Magalhães?
Não sei o que vai acontecer neste futuro próximo. Se calhar o mundo vai mesmo acabar… Um Espaço Aberto… Fechado? Não, porque o Espaço Aberto nunca foi um espaço físico. Foram as Pessoas que o construíram, ao longo do caminho, aproveitando os “corredores de liberdade”. Um espaço de afectos e ideais. Um ACREDITAR.
E choro. E o direito de chorar ganhei-o com dez anos de trabalho. A ver as mudanças acontecerem, pela mão da Educação Informal. Suponho que o Direito ao Choro ainda não tenha sido proibido pelo Ministério da Educação. A menos que, por serem artesanais, estas lágrimas tenham sido proibidas pela ASAE!
E mais uma vez uma música. Fora do universo Flamenco. Uma música, um poema, um poeta-cantor-músico, que dispensam apresentações. Para mim, pelo menos. Uma música, que parece estar outra vez actual… (não consigo encontrá-la na net, mas não desistam de ouvi-la)
"Tinha uma sala mal iluminada" (Zeca Afonso)
Tinha uma sala mal iluminada
Perguntavas pelo amigo e estava a monte
A fuga era a última cartada
A pide estava ali mesmo defronte
As vezes uma dúvida rondava
Valia ou não a pena o que fazias?
Se alguém caía um outro alevantava
O tronco que tombava e renascias
A velha história ainda mal começa
Agora está voltando ao que era dantes
Mas se há um camarada à tua espera
Não faltes ao encontro sê constante
Há sempre quem se prante à tua mesa
Armado em conselheiro ou penitente
A luta agora está de novo acesa
E o caminho é só um é sempre em frente
Perdeste a treino falta-te a paciência
Ouviste antes do tempo mil fanfarras
Já os soldados fazem continência
Ao som do choradinho e das guitarras
A velha história ainda mal começa
Agora esta voltando ao que era dantes
Mas se há um camarada à tua espera
Não faltes ao encontro sê constante