sábado, 29 de novembro de 2008

Camino Interior


E esta podia ser a banda sonora da história anterior...



http://www.youtube.com/watch?v=WT_zy9yQK2w


Camino Interior - Chambao

Temores, suspiros, quebrantos
que traen el llanto
Deseos,
esa extraña fuerza que me povoca, aaayayay!!

Palabras,
Que se las lleva el viento y son de mi boca
Pensamientos malos que me envenenan
yo quiero librarme de esta condena

Y encender esa luz
que llevamos dentro...

Destellos, conectan lo puro
que llevo dentro

Sonrisas
calor y dulzura pa mis adentros ooayayay!!
Miradas, que rozan la punta el entendimiento
pensamientos puros queme liberan
lleno de bondad y buenos sentimientos

Y encender esa luz
que llevamos dentro...

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A Brigada da Peuguinha


As ciganas são vaidosas. O flamenco faz bem à auto-estima. Ouço muito a primeira frase dita pelas próprias mulheres ciganas. A segunda é a minha Professora Sónia que diz. Também ela cigana. E vaidosa…

Dançar flamenco exige esforço, coordenação, sentido de equilíbrio, concentração. Lembro-me que após o aquecimento na minha primeira aula estava pronta para ir de férias para um qualquer resort. E que no final duvidava seriamente se teria aquilo que se designa por “esquema corporal” e “dominância lateral”, que se adquire pelos 4, 5 anos: esquerda, direita, esquerda, direita… Estas competências são trabalhadas em aulas de flamenco, mas também na natação, no futebol, na ginástica,…

Mas bailar flamenco é muito mais que aprender uma coreografia. Não se baila flamenco porque se contam passos, mesmo quando falamos de sevilhanas, que parecem ter uma estrutura mais aritmética. O flamenco é uma cultura e isto significa que é preciso interpretar, apreender, assimilar, viver, sentir. E, por isso, apesar de termos o mesmo tempo de aulas e de aprendermos as mesmas coreografias, eu nunca conseguirei dançar a “Sarandonga” para lá do mero contar de passos. E quando danço a “Paloma”, posso enganar-me em quase tudo e ainda assim corro o risco de ouvir a Fiona dizer-me “morre!”.

E temos a coordenação motora e o sentir a música. Mas para entender as minhas duas primeiras frases ainda falta explicar outra coisa. Mais complexa e mais demorada no tempo.

Bailamos em frente a um espelho. Os primeiros meses com os olhos cravados no chão. A vergonha de olharmos em frente, para nós próprias. A aceitação do que o espelho nos devolve chega devagarinho. E a imagem devolvida vai muito além da imagem física. A segurança naquilo que estamos a fazer, a expressão da nossa forma de pensar e viver o mundo. A expressão interior, a sensualidade. O nosso EU a aceitar-se, a ganhar confiança e a enfrentar novos desafios.

E depois começamos a bailar a pares. Gostamos de nós mesmas. E o Outro vai aceitar-nos como somos? Os olhos cravados no chão ou num braço ou no rodopiar de uma saia. Mais lentamente, a relação a construir-se, a harmonizarmos movimentos, a interpretar a música. Num mesmo sentir. A aceitação do Outro, porque o Outro também nos aceitou a Nós.

Os espectáculos. A sedução já não se dirige para uma imagem num espelho, não é um “namoro” com o par que está à nossa frente. É num palco. O público com os olhos cravados em nós. Nós com os olhos cravados no chão. E o medo de não gostarem de nós volta. O processo reinicia-se, como se estivéssemos em frente ao espelho. E devagarinho aceitamos o desafio: encantar o outro que não conhecemos.

E o processo de encantamento com o flamenco e com o nosso Eu, e a forma como vamos seduzindo o Outro e o Outro nos vai seduzindo a nós, a lembrar-me o caminho no qual nos deixamos envolver pelo Outro diferente de nós, de outra Cultura. Pela descoberta, pela aceitação da diferença, pela sedução, pelo prazer, pelo afecto. Mais uma vez.

E estes caminhos interiores que vamos percorrendo são, em primeiro lugar, visíveis por fora.

Todos os espectáculos das Araquerar têm a sua história, especialmente pelos momentos que se vivem nos camarins, antes da entrada no tablao. Mas há um momento clássico, que se repete em todos, que acontece quando a nossa Professora desespera connosco e grita num desabafo: “Eu não aguento! Eu vou desistir!!! Vocês dão cabo de mim!”.

Dizia isto nos primeiros espectáculos, porque resistíamos à maquilhagem, à saia garrida, ao cabelo apanhado e colado com gel. Disse-o quando num desses espectáculos, uma de nós resolveu levar pezinhos de mousse, em vez das collants de seda que brilham com as luzes do palco. E nesse dia o desabafo saiu-lhe mais dramático e em desesperança: “Isto parece a Brigada da Peuguinha!!!

E hoje repete o lamento porque as suas duas mãos não chegam para nos ajudar na maquilhagem, para agrafar a infinidade de ganchos e elásticos aos cabelos rebeldes… Porque naqueles momentos que antecedem a avaliação do nosso Eu pelos Outros anónimos, a esmagamos com mil e uma dúvidas sobre a imagem que vive no nosso espelho mental.

E a culpa é dela. E a Sónia sabe-o. Porque nos seduziu. Porque nos ampara a construção do EU. Que ainda não acabou. Porque ela diz muitas vezes que o flamenco faz bem à auto-estima.

E isto reflecte-se nos cabelos, que crescem até limites nunca antes vistos e que são quotidianamente penteados com os dedos, num gesto de auto-sedução. Os cabelos longos ou à “heavy metal”, teimosamente colados à cabeça com gel e ganchos, em dias de espectáculo.

E também nas orelhas que se furam para podermos usar argolas. Ou nos périplos que fazemos pelo Martim Moniz até encontrarmos os “castiçais” azuis turquesa, exactamente da cor da risca da saia. Ou nas unhas que antes só admitiam o verniz transparente ou branco, e agora sentimos as mãos despidas sem o “vermelho love”. E ainda nas calças de ganga, peça fundamental do guarda-roupa sem a qual não nos sentimos nós próprias, a ficarem esquecidas nos cabides e a serem substituídas pelas saias coloridas.

O flamenco faz bem à auto-estima e isso vê-se por fora. Mas sente-se por dentro. As ciganas são vaidosas… Difícil seria não o serem!


(Esta história é para as Araquerar. Pelo caminho percorrido. Pela vaidade de sermos NÓS! OLÉ!!! E fica aqui mais um desafio: que tal enviarem-me fotografias, para eu não ficar sozinha ali em cima? É que tenho vergonha, ainda...)

Edição Fotográfica: Cromo do Espaço (Gracías!)



terça-feira, 18 de novembro de 2008

Um Espaço Aberto... Fechado?


Costumo contar a história do Espaço Aberto dizendo que tudo começou com um frigorífico. Em 1998, duas educadoras pediram-nos ajuda para comprar um pequeno frigorífico para guardar os lanches das crianças que frequentavam o Centro de Animação Infantil e Comunitário da Bela Vista (CAIC).

As dinâmicas geradas pelo CAIC com as famílias e com a comunidade, de “portas abertas” em acolhimento permanente, fizeram daquela instituição um espaço privilegiado de entendimentos entre educadoras, crianças e famílias. Não é por isso de estranhar que fosse sobretudo a comunidade cigana a procurar o CAIC, confiando a educação das suas crianças às educadoras que lá estavam. As mães a ficarem mais um bocadinho, a pedirem ajuda para decifrarem os códigos das cartas que recebiam pelo correio, enviadas pelas entidades que nos “organizam” a vida. As mães a ficarem na conversa, antes de voltarem para a rotina do “amanhar da casa”.

Neste entrelaçar de relações que perduravam no tempo, os irmãos mais velhos iam ficando pelo CAIC, depois das aulas. E por isso, quando nos pediram ajuda para comprar um frigorífico, as educadoras pediram-nos também ajuda para encontrar respostas para estas crianças, que não tendo idade pré-escolar, continuavam a exigir um espaço de brincadeiras e afectos. Nascia o Espaço Aberto.

E com a então estagiária de animação sócio-cultural Teresa, começámos a dinamizar actividades, a conhecer as crianças, a perceber a teia de relações familiares. Começámos por partilhar o espaço com o CAIC. Em poucos meses conseguimos um espaço próprio para as actividades, mas sempre de mãos dadas com o CAIC. Recordo desta altura o meu assombro com a facilidade com que crianças de culturas diferentes conviviam num mesmo espaço, gerindo territórios e conflitos. Subtilmente. A exclusão entre uns e outros, gerida com mestria. A presença de todos mas separados. A multiculturidade ali. A transculturalidade ausente.

A descoberta de um sem número de crianças que com 9, 10 anos não frequentava a escola, fez com que um grupo de pessoas apresentasse em 1999 um Projecto, financiado pela União Europeia, que consistia num centro comunitário de tempos livres, mas com um funcionamento assente não numa inscrição, mas na vontade de participar. Associado a este centro, uma turma de currículos alternativos de 1º ciclo, alunos que aprenderiam as competências básicas escolares fora da escola, enquanto brincavam.

Este caminho foi construído com o Instituto das Comunidades Educativas (ICE) e com a Myrna, com o CAIC e com as educadoras Cristina e Teresa, com as professoras Cristina, Dores e Clara e, pasme-se!, com o nosso Ministério da Educação, pelos então CAE e Recorrente (e a magia da professora Conceição a abrir a caverna do Ali Babá). Quando no início de Setembro de 1999, andávamos a contactar as famílias para inscrever os alunos, uma menina cigana responde ao meu desafio para integrar a turma de uma forma inesquecível: “Ayyy… Então pra quêi? O mundo vai acabar no ano dois mili!!!”. Ainda hoje procuro a resposta para lhe dar…

Mas o mundo não acabou e durante um ano lectivo, enquanto decorriam actividades de tempos livres, uma turma de sete alunos (6 de etnia cigana), rapazes, aprendia a ler e a escrever. Para tirar a carta de condução, uns, para terem uma vida melhor, outros. Recordo o Floriano, teria os seus 10, 11 anos, tinha largado a escola há muito. Não sabia uma letra. Em dois meses, aprendeu a ler e a escrever. Hoje, já casou e tem filhos. Ter passado pelo Espaço Aberto não o impediu de ir para a venda, ganhar a vida. Mas os filhos do Floriano, quem sabe? E hoje, quando o encontro de tempos a tempos, o respeito mútuo, a inscrição de uma experiência diferente na vida de cada um de nós. Ele a dizer baixinho aos familiares, nas filas do ferry, “a ela não vendas, foi minha professora”. E eu a falar dele em todos os colóquios e encontros quando me convidam a botar discurso sobre estas coisas da Educação.

E os ateliês num novo espaço. Mais distante do CAIC, mas o cordão umbilical a resistir ao corte. Os ateliês de expressão dramática, de sombras chinesas, de malabarismo, de pasta de papel… As festas nas escolas e os chaborilhos a ensinarem os lacorilhos. A serem valorizados por aquilo que sabem fazer. As festas comunitárias… As famílias a ajudarem a construir o espaço. A serrarem prateleiras, a pintar salas. A fazer bolos. O descobrir de uma comunidade. Solidária quando se sente envolvida. E os animadores a (re)inventarem a animação comunitária. A Catarina, a Ana, o Marco, o Cachucho… E o Ivo, homem dos sete instrumentos, disponível para tudo. O noivo, segundo a vontade da Mima.

Foi uma experiência difícil mas para uma vida. Eu, sem perceber fosse o que fosse de “culturas institucionais”, movida apenas por um Duende que me fazia acreditar que aquele era o caminho. Em 2000, os assaltos às gasolineiras e o “caso Lídia Franco” põem o Bairro Azul da Bela Vista na Comunicação Social. Pelos piores motivos. O estigma, o estereótipo, a minarem a auto-estima de uma comunidade já de si fragilizada pela exclusão. Começámos a ter problemas com a vizinhança, não cigana. O espaço constantemente vandalizado. Os preconceitos e a xenofobia a regressarem em força. Fechámos as instalações. Não fazia sentido continuar contra a vontade da comunidade envolvente.

Abandonámos as instalações mas não abandonámos a ideia. Não temos um espaço, fazemos na rua! E começámos a fazer actividades no meio dos pátios dos Bairros. No chão. Com quem aparecesse. E apareceram muitos! Nunca tinha imaginado existirem tantas crianças e jovens na rua, sem ocupação. Fizemos actividades no Bairro Azul, numa altura em que se ouvia na televisão que era impossível lá entrar! Dominado pelos gangs, diziam…

Construímos uma baleia gigante em esponja, símbolo de uma nova etapa. Andou connosco para todo o lado, a dizer que continuávamos ali, até apodrecer. Fizemos Capoeira. Fizemos música com latas e contentores, pedinchados na construção civil. Contámos histórias a quem nos quis ouvir e construímos puzzles que se viam do céu. Com o Domingos Pedro, a Vera, o Pedro, a Patrícia e a Andreia. Com o Teatro do Elefante, a PédeXumbo, os Blábláblá. A Telma de dossier na mão a sinalizar os presentes e a descobrir “bairros” até então invisíveis. A Filipa a embrulhar saquinhos de bolachas e a esconder tesouras nos bolsos, a descobrir-se…

E o Chico. Uma criança com uma história de vida muito difícil. Traumática. A dar-nos que fazer, a dar sentido ao estarmos ali: foi esta a profissão que escolhemos! A Ana Maria a desdobrar-se em telefonemas para procurar soluções. O David a aprender a ser Professor. A ter um teste à altura e a passar com Bom Mais! A criarmos uma rede de entendimentos com o professor, o Amílcar. O Chico, a testar o funcionamento das Instituições. Estas a chumbarem…

E com a Animação de Rua o caminho da transculturalidade a desenhar-se em frente dos nossos olhos, no chão sujo dos Bairros da Bela Vista. As diferentes culturas a partilharem saberes e sentires. No meio da rua. Pela dança. Pela música. Um Espaço Aberto a todos. E para todos.

Em 2002, o financiamento acabou. Acabou o Espaço Aberto? Não. Os Senhores que Mandam no Mundo ainda tinham qualquer coisita para dar. Fizemos obras na antiga escola primária do Bairro. Preparámos o espaço para nos acolher. O Espaço Aberto e o CAIC juntos, finalmente. Num espaço com laboratório de fotografia, sala multimédia, ludoteca, sala de dança, tabela de basquetebol… Em Outubro de 2005, o Mundo era nosso! E ninguém nos tinha dito que ia acabar, vítima de alguma conjugação cósmica manhosa…

A Educação para a Cidadania, num espaço com condições para a acolher. A Participação Cidadã, num espaço com condições para a promover. Sem inscrições. As crianças e jovens a participarem pela vontade de participar. E os ciganos, mais uma vez, a encontrarem naquele espaço, um espaço deles. De acolhimento. De entendimento. De afectos e de comunicação. E a transculturalidade a espreitar. Os diferentes sentires e saberes a serem escutados e incluídos. Pela mão da Débora, da Susana, do Pedro, do Miguel, do Luís, do Vítor, da Maria do Céu, da Myrna, dos Momentos Mágicos, de estagiários e voluntários (sei o trabalho que desenvolveram mas não sei o nome de todos, por isso não escrevo de nenhum, e peço desculpa por isso).

É neste contexto que nascem as Gipsy Stars, contadas na história anterior. São lançadas as sementes para um outro trabalho com as famílias. A educação das meninas ciganas. A emancipação da mulher cigana. Pontes construídas. Espaços de entendimento. Através da Fotografia trabalhámos a questão de género. Fizemos uma exposição. As mulheres a dizerem o que pensam. Para toda a gente ouvir. E reflectir.

A Educação para a Cidadania e a Revolução Portuguesa. O que significa isto para cada cultura. Para uns a liberdade de poder dizer o que se pensa. Para outros, o fim de uma guerra colonial. Para os ciganos, a liberdade chega devagarinho… E esta não é a Cidadania que se aprende nas escolas. Não é o saber do Hino. Não é o reconhecer da Bandeira. Não é o conhecimento dos Direitos e Deveres, papagueados pela Constituição.

É a Cidadania do vivido e reflectido. Do questionar permanente. O que é isto para cada um de nós? O que é para os outros? Como se constrói? O que posso fazer eu para mudar o espaço que me rodeia ou o outro lado do planeta? O que me podem exigir a mim? A Educação para a Cidadania, construída e reflectida a partir do vivido, pela comunicação com o Outro, pelo afecto. Pelo INFORMAL.

Em 2007, o CAIC acabou. Sinal de um sistema educativo em mudança. O burburinho de que acabariam os centros de tempos livres a tornar-se ensurdecedor. As crianças cada vez mais ocupadas nas escolas. Fechadas. Em actividades, atrás de actividades. Formativas. Formais. A explodirem nos recreios de 15 minutos. Em escolas que não foram pensadas para dinamizarem esta diversidade de actividades. Os recursos humanos insuficientes para gerirem aulas, actividades de enriquecimento curricular, recreios, apoios ao estudo…

Os professores a desdobrarem-se em tarefas que ultrapassam, e muito, aquela que é a sua missão, aquele que é o seu horário de trabalho… A motivação, a energia… Onde estão? A manifestarem-se contra. Cento e vinte mil… Enfim! Se calhar tinham de ir todos para que o Ministério considerasse válidas as suas reivindicações. Quem faltou?

E os ATLs a fecharem, os centros comunitários a procurarem estratégias de sobrevivência. Em nome de quê? Para quê? Para que crianças de 6 anos possam pronunciar com o melhor sotaque de Yorkshire “I like yellow”? E a Educação para a Cidadania, onde fica? O conhecer o Outro? Ou nós agora conhecemos o Outro pelos manuais escolares? E o Mundo? Conhecemos o Mundo através de um link no Magalhães?

Não sei o que vai acontecer neste futuro próximo. Se calhar o mundo vai mesmo acabar… Um Espaço Aberto… Fechado? Não, porque o Espaço Aberto nunca foi um espaço físico. Foram as Pessoas que o construíram, ao longo do caminho, aproveitando os “corredores de liberdade”. Um espaço de afectos e ideais. Um ACREDITAR.

E choro. E o direito de chorar ganhei-o com dez anos de trabalho. A ver as mudanças acontecerem, pela mão da Educação Informal. Suponho que o Direito ao Choro ainda não tenha sido proibido pelo Ministério da Educação. A menos que, por serem artesanais, estas lágrimas tenham sido proibidas pela ASAE!


E mais uma vez uma música. Fora do universo Flamenco. Uma música, um poema, um poeta-cantor-músico, que dispensam apresentações. Para mim, pelo menos. Uma música, que parece estar outra vez actual… (não consigo encontrá-la na net, mas não desistam de ouvi-la)


"Tinha uma sala mal iluminada" (Zeca Afonso)

Tinha uma sala mal iluminada
Perguntavas pelo amigo e estava a monte
A fuga era a última cartada
A pide estava ali mesmo defronte

As vezes uma dúvida rondava
Valia ou não a pena o que fazias?
Se alguém caía um outro alevantava
O tronco que tombava e renascias

A velha história ainda mal começa
Agora está voltando ao que era dantes
Mas se há um camarada à tua espera
Não faltes ao encontro sê constante

Há sempre quem se prante à tua mesa
Armado em conselheiro ou penitente
A luta agora está de novo acesa
E o caminho é só um é sempre em frente

Perdeste a treino falta-te a paciência
Ouviste antes do tempo mil fanfarras
Já os soldados fazem continência
Ao som do choradinho e das guitarras

A velha história ainda mal começa
Agora esta voltando ao que era dantes
Mas se há um camarada à tua espera
Não faltes ao encontro sê constante


quarta-feira, 12 de novembro de 2008

As Gipsy Stars




"Se na'bailas bem, mato-te!", dizia uma das mães para a sua chaborrilha, sorrindo, à entrada do autocarro que levaria as Gipsy Stars pela primeira vez à Feira de Sant'Iago. Estávamos no final de Julho de 2006.

O grupo tinha nascido meses antes num centro comunitário do Bairro - o Espaço Aberto, no ateliê de Danças Orientais. Um grupo de meninas ciganas, encantadas com as novelas do Clone e as Shakiras da televisão. Chaborilhas a aprenderem uma arte que fazem como ninguém: dançar!

E a Professora a preencher-lhes o imaginário infantil, com histórias das Mil e Uma Noites, qual Xerazade, a mostrar-lhes por artes mágicas a voar no tapete dos sonhos. Mas ao contrário da Xerazade do Livro que contava histórias, esta a escutar-lhes as histórias.

As chaborilhas numa idade em que o corpo se transforma, em que o sentir é outro... As chaborilhas transformadas em Jasmines, a sentirem curiosidade e a perguntar pelo primeiro beijo do Príncipe Aladino. E uma Professora a ensinar os shimins e os infinitos das Arábias, a espalhar moedinhas de cintos, a espalhar afectividade. E a construir uma relação de cumplicidade que chegaria às famílias. A confiança, a educação transparente. Informal. A construir pontes entre duas culturas. A comunicação...

E depois, o desafio. A irreverência, o contestar das regras. Os momentos difíceis. A aflição de não conseguirmos gerir um espaço numa relação de professora-alunas. Elas a desafiarem a autoridade, a impôr a sua vontade num espaço que também é delas. E com isto a dizerem tão simplesmente, como todas as crianças: "Nós gostamos de ti. E tu, até onde gostas de nós?".


Senti isto na pele quando me desafiaram, em 2007, a ensinar-lhes uma coreografia. Aceitei o desafio, arregacei as mangas e ensinei-lhes a primeira coreografia que aprendi com as Araquerar: "Como el agua", do Camarón. Aqui, com a dificuldade: ensinar ciganas a bailar "espanholas". Ensinar o quê, como? Elas que dançam instintivamente, a expressividade ali, com Duende...

E aqueles momentos recordo como do mais puro prazer e aprendizagem. As miúdas a aprender a concentração que exige respeitarmos o nosso espaço no tablao, a aprender a disciplina que exige contar tempos, a aprender o sapateado quase inexistente no improviso da dança cigana.

E eu... A aprender a ensinar. A aprender o quão difícil é explicar um passo. A reapreender para poder explicar: "Eu sei lá como faço isto! Ora deixa cá pensar...". A aprender a negociar o espaço. A gerir conflitos entre elas, o espelho demasiado pequeno para todas. A gerir conflitos entre famílias... A construir afectos. Elas a dizerem-me, sem palavras:
"Nós gostamos de ti. E tu, até onde gostas de nós?".

Fomos bailar à Feira de Sant'Iago 2007, pequenas e grandes, Gipsy Stars e Araquerar. "Como el agua", do Camarón. Num palco. A partir daí, o meu estatuto mudou. Sou aquela que baila espanholas com a "Cigana da Arrentela". Encontro famílias e crianças nos Bairros e o olhar é outro. O meu olhar é outro.

Um dia, passado quase um ano, num outro espectáculo, as Gipsy Stars rodeavam a minha Professora e pediam-lhe para ela lhes ensinar a dançar, ao que ela disse para me pedirem a mim, que estou ali perto. As chaborilhas responderam: "Ela baila bem, mas é payita!". Passado o choque inicial da rejeição, só pensava "ela baila bem..". Miúdas ciganas, que dançam como ninguém a dizerem isto... Senti-me feliz. Payita! Senti-me bem com o nome. Não o larguei desde então!

Depois da Feira outras aventuras aconteceram. Mas ficam para outras histórias! Nesta gostava que ficasse inscrito em vós, o papel dos sonhos. E do prazer. Porque não foi apenas necessário gerir conflitos com as chaborilhas e entre famílias... Como explicar que o que eu fiz é trabalho? Através de uma actividade que me deu prazer, construí relações com uma comunidade. Pontes de comunicação entre culturas. Porque é que o trabalho tem de ser sempre uma chatice?

Hoje passo nas ruas do Bairro e as miúdas vêm ter comigo. Um beijo, cinco minutos de conversa. Nas esquinas, a conversar, as famílias depois dos mercados. A olharem para mim. Diferente. E eu... La Payita... Só queria ser o Ali Babá, agarrar na lâmpada do Génio e esfregar... Conceder-lhes os desejos todos!

(Esta história é para todas as crianças ciganas, e para as Gipsy Stars em particular. Que consigam realizar todos os sonhos, que sonham a dormir ou acordadas... E para a Filipa Matos, Xerazade das Mil e Uma Faces, a que espalha magia...)




Um Olé! com Duende para tod@s

E enquanto o Duende vem e não vem para a próxima história... E porque fui surpreendida hoje pelo Duende de outra pessoa...

Tenho agradecido aqui e ali o feedback que vou recebendo do(a)s leitore(a)s deste Caderno. Que o vão fazendo aqui publicamente ou pessoalmente. Vou agora agradecer como deve ser, com a reverência que merecem.

Os vossos comentários levam estas histórias além. Porque lhes acrescentam sempre mais qualquer coisa. Porque me desafiam a escrever sobre temas que não me tinham ocorrido. Porque é gratificante perceber que estas coisas interessam, que geram aprendizagens para outro(a)s e para mim, que induzem reflexão. E, sobretudo, porque geram solidariedades e cumplicidades.

Gracías! Um Grande Olé para todo(a)s! Com Duende!

E agora deixo-vos com um comentário que recebi hoje, anónimo. Não sei de quem é, e talvez isso não tenha importância (a não ser para a desgraçada da minha curiosidade... Que me mata!!!). Escrito com Duende. Escrito por quem sabe/entende o que é ser visitado pelo Duende... Olé!!!


"Últimos preparativos no camarim improvisado, num corrupio contra o tempo. Tic-tac... Tic-tac. Um retoque final na maquilhagem. Tic-tac. Já falta pouco tempo. O coração agita-se e marca o ritmo. Pum-pum... Pum-pum.... Preparam-se para o receber.
Tudo pronto. Tic. É hora! Tac. Dirigem-se ao palco com os nervos a aflorar a pele. Tic-tac... Pum...pum...
“- Será que ele vem?” Pum-pum... Pum-pum.... Pisam o tablao. Tomam as suas posições. Fitam o chão. “- Deve estar a chegar?” Pum-pum... Inspiram um último fôlego, um último trago de coragem. Descolam o olhar do chão e colam-no ao público que aguarda. Pum! É o momento!
Erguem os braços e os seus olhos acompanham esse movimento, uma súplica aos céus para que ele chegue rapidamente, para que as inspire naquele momento. “- Vem depressa. Aqui te aguardamos.”
O coração continua a entoar o seu cântico dentro do peito. Pum-pum... Pum-pum... Pum-pum...Pum-pum... Ao som das guitarras, inicia-se a dança e os golpes fazem gemer o tablao que estremece sacudido pelo vigor dos daquelas chamamento compassado: Pam-pam! Pam-pam! Porque é disso que se trata, de um chamamento, de uma invocação! E de repente, sentem-no! Aí está ele! E todo ele é vermelho e negro. Vermelho fogo, vermelho sangue, vermelho paixão; negro morte. Fogo que aquece o sangue e inflama paixões. Paixões que são a vida e que são a morte.
E ele sobe como uma brisa, gira em torno delas em volteios de vento e rodopios de furacão. Cola-se à sua pele, entranha-se nela, fazendo de cada poro porta de entrada e incendeia-lhes o sangue.
Pum-pum... Pum-pum... Pum-pum... Grita o coração dentro do peito embriagado em labaredas rubras de excitação.
Ele olha-as. Elas sentem-no. Elas olham-se. “- Ele está entre nós. Ele está em nós!” E todos unidos nessa cumplicidade, fundidos numa só alma, continuam a sua dança, vermelha de Amor exaltado pela Paixão. Pam-pam... Pam-pam... Pam! Golpe final, no tablao. Estocada final, negra.


Ele olha-as e esboça um sorriso. É hora de partir. Tic-tac. Chamam-no noutro lugar. Elas sentem-no partir, olham entre si e erguem as mãos aos céus num agradecimento esticando os dedos como que tocando as estrelas, como acariciando aquele que há-de regressar. Elas sabem que sim."

domingo, 9 de novembro de 2008

Hasta Siempre!

E quem sabe? Para o ano na Festa bailamos esta? Vamo' ya! Olé!!


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Não há Festa como esta!


Se me dissessem na minha primeira aula de Sevilhanas que dois anos mais tarde iria bailar à Festa do Avante, não teria acreditado! Mas aconteceu…

As Araquerar foram convidadas para ir bailar à Festa do Avante 2008. Dois espectáculos. O contacto surgiu através de mim, fui eu que tratei de tudo! Assim funcionam Las Araquerar! No dia em que recebi pelo correio uma cartita da Festa do Avante dirigida às Araquerar e a confirmar a nossa participação, assinada pela Dótora do Arraial, percebi que não estava a sonhar. Era a sério!!! (Tenho o bendito papel em cima da mesa da sala, dobrado e desdobrado tantas vezes, quase a rasgar-se, e que vai resistindo às investidas da gata… Vou emoldurar!)

O dilúvio a anunciar o fim do mundo que aconteceu na sexta-feira não fazia prever o fim-de-semana de sol radioso que aconteceu. De propósito para nós, claro! O S. Pedro com vontade de nos ver actuar. Nesse dia não foi possível fazer o sound check, que é como quem diz, ver se o CD funcionava. As aparelhagens em curto-circuito. Logo se vê! Alguma coisa há-de acontecer! Nada que demova Las Araquerar!!!

Sábado, 18 horas, Palco Setúbal. O som perfeito! O palco grande, baixinho. A pedir para saltarmos para a relva em frente, para dançar com o público. Ou para as pessoas virem ao nosso encontro. Fomos uma hora mais cedo para o camarim do Palco Setúbal, um barracão de madeira, relvado. Sem espelho. Lá dentro, o caos! Artistas a despirem-se, instrumentos musicais por todo o lado. As nossas roupas espalhadas. A improvisarmos espaços de maquilhagem. A confusão era tal que quase temi que o grupo de teatro que actuou a seguir fosse caracterizado de sevilhanas…

O espectáculo. Inebriante! Quase perfeito. Um engano aqui, outro acolá. Lembro-me que uma de nós levou à letra o poema do José Régio: “Não sei por onde vou, Não sei para onde vou, Sei que não vou por aí!”. E resolveu inovar o “Caminito”… O público a responder. A invadir o palco e a bailar connosco. Não me apetecia sair do tablao. Por mim continuava… Não há Festa como esta! Olé!!!

Antes do merecido jantar ainda fomos espreitar o Espaço Mulher onde seria o espectáculo do dia seguinte. Ficámos apreensivas… A ladear a entrada da Medideira, em plano inclinado, um espaço relvado, sem palco, sem estrado. Bailar na relva? Impossível! Não se ouve o som dos pés. Os saltos dos sapatos enterram-se, ainda partimos um tornozelo… Então e no alcatrão? Muito difícil, em plano inclinado, no meio da estrada… E agora? Desistimos? Logo se vê! Alguma coisa há-de acontecer! Nada que demova Las Araquerar!!!

Domingo, 16 horas, Espaço Mulher. Fomos uma hora mais cedo para o camarim do Palco Arraial, um barracão de madeira, relvado. Com espelho. Lá dentro, o caos! Tambores, bombos, por todo o lado! Os Pauliteiros de Miranda a dizerem-nos que também lá estavam…

O sítio do espectáculo de Domingo ficava distante do Palco Arraial. Atravessámos metade do recinto da Festa, vestidas com os nossos trajes flamencos. Nos pés, chinelas para não estragarmos os sapatos. Nos meus pés, chanatas do Lago Titicaca, feitas de pneus velhos, que duram uma vida inteira, compradas umas horas antes, a dois euros, que podíamos dar o que quiséssemos, a ajudar os povos distantes dos Andes. A Fiona a contagiar-me… Que não conseguiu comprar umas para ela, enquanto experimentava um avental do Perú.

Só pelo caminho percorrido nesse dia até ao Espaço Mulher, teria valido a ida à Festa. As muitas pessoas a interagirem connosco, nós a corresponder. Os Olés!! de uns e outros pelo caminho… Um cortejo de cor e alegria. A comunicação… As Araquerar! E não há Festa como esta!

Decidimos no momento dançar no alcatrão inclinado da Medideira. Os mastros das bandeiras a rodearem-nos. A música popular portuguesa nos altifalantes. E no Espaço Mulher, a ordem das músicas diferente do CD. Eu, em língua gestual, a entender-me com o Camarada do som. As muitas e muitas pessoas a passarem enquanto dançávamos. A pararem. Algumas a fazerem-nos perguntas, enquanto sapateávamos e braceávamos. As pessoas próximas. O Duende a espreitar… E nós a improvisar as coreografias num tablao também ele improvisado. A primeira música bailei-a em cima de uma bosta. A sapatear “Ay como el aguaaaa…” Aquela já dali não sai, os Camaradas bem podem agradecer-me!!!

A Sãozinha de garrafas de água nos braços… A Dótora do Arraial a tirar fotografias… A Myrna e a Clara a juntarem-se à festa, em solidariedade… O público a improvisar rumbas… De passagem… Senti-me bem… Senti-me cigana! Foi o espectáculo onde mais me senti… Não há Festa como esta! Olé!!!

Já o escrevi antes. Somos um grupo de mulheres, idades diversas, profissões diferentes, percursos de vida distintos. Cada uma com as suas convicções políticas. O que nos levou até ali foram as cumplicidades que temos umas com as outras. E cada uma de nós terá vivido a Festa à sua maneira…

Tenho ido a quase todas. Cada uma delas me marca, por este ou por aquele motivo. Esta Festa foi diferente. Pelos mojitos clandestinos “a La Payita”, aos quais só faltou mesmo o avental. Pelas imagens que guardo da Sãozinha a falar ao telefone da Loja dos Trezentos ou a tocar o pesadelo de um bombo e um gaiato de 11 anos a dizer-lhe “Isto é fácil, já estou habituado!”, com a pronúncia do Norte. O Palco Arraial…

… E as Araquerar. A Fiona a enfiar-se em todas as Feiras da Ladra que encontrava. A Joana a abanar a cabeça, a pensar “estas cotas são doidas!” e a contar os minutos que faltavam para ir ter com os amigos. A Isa, a desdobrar-se numa míriade de Isas para estar em todo o lado ao mesmo tempo e a responder à altura a todos os papéis que se esperam dela (grande Mulher! Olé!). A Carla a preparar-se para uma nova etapa da vida e a não poder sapatear, mas a jalear com tal jondura que a sentimos no palco (ela não bailou, mas os olhos fizeram as coreografias todas!). Eu, a bailar durante dois dias, em qualquer lado, assim houvesse música, fosse qual estilo fosse. E a Sónia… A experimentar a Festa. A observar, a apreender. A ir a tudo. A viver o que dantes vivia pela janela de casa. A vê-los passar…

A Liberdade. Tantas vezes analisada, debatida, sentida, vivida na Festa. Nós a fazermos o mesmo. A liberdade de expressão, a liberdade no nosso país, a liberdade nos países latino-americanos... Cuba, Che, Fidel, Chile, Allende… Eu a contar o que sei… O que penso… O que sinto… E a bailar em qualquer sítio, de improviso. E a liberdade de estar na Festa, depois de muitos anos a ver da janela…

A transculturalidade. A comunicação. O afecto. Uma Cigana a deixar a Festa cantando o Avante Camarada. Uma Payita na Festa bailando de improviso em qualquer lado. E penso… Nunca tive uma Festa como esta!

(Esta história é para a Sãozinha que acredita no que está para lá do óbvio… Uma Mulher de Liberdades. Um Olé! Com Duende…)

domingo, 2 de novembro de 2008

Ai, Portugal, Portugal...


“A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.”

Gabriel García Márquez


A Faculdade terminada. O canudo numa mão, o desemprego na outra. Nunca tive jeito para estar sossegada. Fui trabalhar voluntariamente para o Instituto de Apoio à Criança (IAC). Bairro da Ajuda, Lisboa. Num projecto que se chamava “Acções de ligação à comunidade”. Eu, mais uma vez a tropeçar no comunitário. Coincidências! Ou talvez não…

Estávamos em 1996. Em Lisboa conhecia as estações do Metro e pouco mais. Alcântara, a passagem pelo Casal Ventoso, visto cá de baixo, pela janela do autocarro. Aconteciam dias diferentes, quando tínhamos a companhia de “arrumadores” que viajavam até à Capital. Quarenta e cinco minutos num frenesim… A saída em Alcântara, a subirem a rua, rapidamente. À procura daquilo que lhes embalaria o resto do dia…

O Bairro da Ajuda. Missão: acompanhar os voluntários que faziam a animação dos recreios nas escolas do Bairro, sinalizar situações de absentismo e abandono escolares, construir pontes entre a família e as escolas.

O bairro social. As escolas. As ruas. As pessoas. Não sei se consigo recordar os nomes. Mas lembro-me dos cheiros, das cores. Dos professores, dos voluntários, das crianças. Do Centro de Saúde. Das pastelarias, das lojas de penhores. Das ruas a subir e a descer. Como se fosse hoje.

O bairro social. Caixotes brancos, de três andares, escadas estreitas, a roupa estendida na corda, os átrios ocupados com os restos da vida da qual não nos conseguimos separar: uma cadeira partida, a caixa de madeira da fruta, uma bicicleta sem rodas, o candeeiro de mesa sem abajour… Caixotes brancos, milimetricamente iguais, a dizerem-nos que a igualdade existe, na pobreza e na exclusão social… No meio dos prédios, as barracas: o “bairro” dos ciganos.

A escola. A partilhar o muro com as árvores de Monsanto. As crianças sujas, a brincarem à macaca e ao elástico. O sorriso rasgado na cara e o convite pronto para nos juntarmos à brincadeira. Do outro lado do muro, branco e pouco mais alto que eu, as mães encostadas a prostituírem-se, para que nesse dia a última refeição não fosse o leite distribuído na escola. Os preservativos e as seringas espalhados, num parque que deveria ser cenário de explorações e aventuras dos Robins dos Bosques de palmo e meio.

A outra escola. No Casalinho da Ajuda. Perdida num bairro de moradias, as cortinas de renda nas janelas, as loiças de feira a decorarem as entradas, o estuque a descoberto, os esgotos a céu aberto. Duas crianças no refeitório, a comerem sofregamente. Com as mãos. Como se o mundo fosse acabar já a seguir. Perguntei a uma professora porquê. Porque não utilizavam os talheres, colocados ao lado do prato de alumínio? Porque aquela era a primeira refeição do dia. E a única, provavelmente.

E uma rua. Algures por aqui. Casas baixinhas, coladas umas às outras, brancas e azuis. Porta sim, porta não, a tuberculose escondida lá dentro. À espera do próximo, insidiosa.

Um dia, a responsável pelo projecto diz-nos que temos de ir falar com uma família cigana porque uma das meninas estava a faltar à escola. Fiquei catatónica! Ciganos? Mas pode-se falar com eles???

Nunca tinha tido qualquer contacto com a comunidade cigana. Cresci na convicção de que os ciganos vivem num outro mundo, que não se cruza com o nosso. E quando tal acontece, nunca é por bons motivos. Ou é para nos roubarem ou para nos agredirem. De navalha na mão. Cresci a pensar que se visse um cigano, facilmente reconhecível porque anda sempre de preto e cheira mal, a primeira coisa que deveria fazer era atravessar para o outro lado da rua.

Não se julgue a minha família com muita severidade. E já aqui escrevi sobre ela. No que diz respeito aos preconceitos sobre ciganos, será como a maioria. Mas ensinou-me a pensar por mim, a questionar tudo, a enfrentar os desafios, a ir à descoberta. A não ter medo do diferente. A ser solidária. E isso fez a diferença!

A primeira vez. Os ciganos. Um bairro dentro de outro bairro. As barracas. Numeradas pelo Programa Especial de Realojamentos (PER). Um bairro à espera de um outro futuro: casas novas, num bairro de caixotes, milimetricamente iguais. Um bairro de barracas, ligadas umas às outras por passadeiras, construídas com tábuas de madeira. Os afectos ali, para quem os quisesse interpretar.

A família cigana. Da barraca nº44. A mesa de madeira e o homem da família a almoçar, sentado à mesa. Batatas com salsa e azeite. A mulher, em pé com o filho mais novo ao colo, um bebé de meses. A dar-lhe batatas com salsa e azeite. Nos olhos, a esperança. Na cara, os sorrisos rasgados. No discurso, o convite à conversa. A miúda, transgressora na escola? Doente. Amanhã voltaria. E voltou. Se porque melhorou, se porque nós visitámos a família, é coisa que nunca vou saber. Mas voltou.

E fiquei ali fascinada. Pelo acolhimento. Não tinha sido roubada nem esfaqueada. Uma família, preocupada com o futuro, os olhos cheios de esperança, num PER que havia de chegar. Um bebé a comer batatas com salsa e azeite. E nós a seguirmos rigorosamente as dietas prescritas pelos pediatras. O leite primeiro, a seguir o cerelac, as sopas… Só depois, muito depois, as batatas. E com salsa e azeite? Bem, o melhor é terem cartão de eleitor primeiro!!!

Mais tarde, pelo Nómada, havia de perceber que tudo isto são manifestações de pobreza. Mas naquele momento estava fascinada! Os ciganos eram completamente diferentes daquilo que eu tinha na cabeça! Desconstruir preconceitos. Foi o princípio de um caminho…

Quando penso nesta fase da minha vida, não consigo deixar de me lembrar d”Os Esteiros”, do Soeiro Pereira Gomes. Não sei porquê. Pelas crianças sem infância? Não sei… Terei de reler o livro. Mas àquela imagem de sofrimento e pobreza das famílias não ciganas, contrasta-me sempre a imagem de esperança e pobreza das famílias ciganas. Iguais na pobreza e na exclusão social.

Deixei o IAC no início de 1997, se a memória não me falha. Nunca mais voltei ao Bairro da Ajuda. Sei que as famílias do bairro de barracas foram realojadas em caixotes, prédios milimetricamente iguais.

Sei que foi construído um Pólo Universitário na Ajuda, para reabilitar a zona, mas que os transportes públicos circumnavegam o Bairro e que os estudantes são assim poupados à dor de terem de olhar de frente o País real.

Sei que o Casal Ventoso acabou. Agora o tráfico e o consumo de droga espalham-se por Lisboa. Pelo Bairro da Ajuda? Provavelmente. As meninas que conheci nos recreios prostituem-se no muro da escola? Para responderem ao frenesim que as invade diariamente? À procura daquilo que lhes embala o resto do dia? Para darem de comer aos filhos?

Quando fui para o IAC, o PER estava no seu início e davam-se os primeiros passos no Rendimento Mínimo Garantido (RMG). Concorde-se ou não com a medida, a verdade é que o RMG pôs a nu a pobreza e a miséria deste País à beira-mar plantado.

Trabalho em Setúbal, há dez anos, em contextos semelhantes. As barracas acabaram, ou são casos isolados. Só muito recentemente voltei a ouvir falar em situações de pobreza extrema. A economia global a reflectir-se. Os “ajustamentos” no RMG a reflectirem-se. Num País do Hemisfério Norte. Desenvolvido.

Passada uma década, continuo a ver professores, educadores, animadores, psicólogos, sociólogos, antropólogos, todas as expressões académicas na área social, a preocuparem-se, a denunciarem, a serem solidários. A resistirem… Um Olé com Duende para todos eles!!!!

E para todos aqueles “senhores” que enchem a boca a falar do “parasitismo social” que existe no nosso País: A fome existe! A tuberculose existe! A xenofobia e o racismo persistem! E pior que isso… A ignorância existe! Mas essa… É vossa!!!


(Esta história é para a Educadora Maria João Malho, responsável em 1996 pelas “Acções de ligação à comunidade” do IAC. Se algum dia ler isto, quero que saiba que aquilo que aprendi com ela ainda hoje está presente.)


Este é um Caderno de Histórias que entrecruza o Flamenco com a minha experiência com a comunidade cigana. As músicas "tocadas" aqui seriam, à partida, músicas flamencas. Mas hoje é só esta que me apetece ouvir…


http://www.imeem.com/people/vSU66r/music/wvAeIABq/jorge_palma_portugal_portugal/


Portugal, Portugal

Tiveste gente de muita coragem
E acreditaste na tua mensagem
Foste ganhando terreno
E foste perdendo a memória

Já tinhas meio mundo na mão
Quiseste impor a tua religião
E acabaste por perder a liberdade
A caminho da glória

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Tiveste muita carta para bater
Quem joga deve aprender a perder
Que a sorte nunca vem só
Quando bate à nossa porta

Esbanjaste muita vida nas apostas
E agora trazes o desgosto às costas
Não se pode estar direito
Quando se tem a espinha torta

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Fizeste cegos de quem olhos tinha
Quiseste pôr toda a gente na linha
Trocaste a alma e o coração
Pela ponta das tuas lanças

Difamaste quem verdades dizia
Confundiste amor com pornografia
E depois perdeste o gosto
De brincar com as tuas crianças

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar