"V" de Viúva

Desafiei uma amiga a contar-me o seu "pachadrom cigano". Companheira de algumas aventuras no meu próprio caminhar, curiosa deste universo imenso das culturas e inventora de uma Jukebox comunitária: http://catsjukebox.blogspot.com/

E a Catizz penou uma história...


"A minha mãe, quando criança, passava muito tempo na quinta do seu avô. Ouvi vezes sem conta as histórias desse tempo. De como a minha mãe, desde muito pequena, saía de casa para se misturar com os trabalhadores da quinta. Gostava de comer pão com cebola com eles, de realizar pequenas tarefas para ajudar. Como era morena e de pele amarelada, muitas vezes a confundiam com as crianças ciganas que acampavam naquelas terras. Este facto inquietava a sua mãe que a queria em casa, limpinha e de laçarotes na cabeça. O meu pai, também criado no campo, falava de como em pequeno invejava os ciganos e a vida do circo. Pela liberdade, pela oportunidade de ver o mundo, por não terem casa fixa.

Cresci com todas estas histórias a preencherem-me o imaginário. Nunca tive o mínimo receio de ciganos, nem quando a minha avó tentava que eu comesse a sopa, ameaçando-me com o cigano do saco. Se ele me levasse dali, podia conhecer o mundo e nunca mais teria de comer sopa. Porque os meninos ciganos de certeza que não tinham de comer sopa. Eram livres!

Foi sempre com dificuldade que aceitei os factos menos positivos da cultura cigana, um pouco ao contrário da maioria das pessoas que conheço. Normalmente, a sensibilidade para as diferenças culturais vem depois. Comigo foi justamente o oposto. Foi com grande mágoa que vi a minha imagem gloriosa dos ciganos ameaçada por factos que, obrigada, tive que reconhecer.Ainda hoje é assim. Tenho que fazer um esforço para relativizar, para ser objectiva. Porque no meu imaginário permanecem heróis da liberdade, resistentes de um sistema que nos empurra para a normalização.

Um dia conheci um cigano. Chamava-se Zé, tinha apenas 15 anos. Eu já ia nos 23 ou 24. Ficámos amigos. Porque nos reconhecemos. Porque éramos parecidos (fisicamente e não só) e todos nos julgavam irmãos. Ele preocupava-se por eu andar sozinha na rua à noite. Eu preocupava-me se ele comia, se os vários irmãos mais velhos não lhe batiam. Pertencia a uma família cigana desgraçada pela vida urbana da capital. Com ele podia atravessar qualquer zona da cidade, a qualquer hora, sem medos. Ele sempre preocupado, sempre cuidador. Olhos imensos, incrédulos pelo nosso inesperado encontro, pela estranha amizade.

Disse-me que se eu fosse realmente cigana, como parecia (na altura tinha longos cabelos negros pelas costas abaixo e usava saias compridas), ninguém casaria comigo. "Tens o V de viúva na testa".Mais tarde, e já em Setúbal, questionei outro cigano sobre a tradição do "V". Riu-se e disse-me: "Isso era antigamente!". E ainda questionou a mãe, que se riu muito e depois me disse: "Velhos costumes! Alguma vez uma rapariga como tu ficava sem casamento!!!".

Acreditem ou não, sosseguei..."

Catizzz