terça-feira, 30 de setembro de 2008

Las Araquerar



Faz hoje precisamente dois anos que tive a minha primeira aula de sevilhanas. A Professora, cigana, já a conhecia de outros caminhos. Estar ali naquele dia não era uma coincidência.


Fui de ténis e saia indiana que a Nhonhinhas Maya me emprestou (e, lembrei-me agora, ainda não devolvi). A Professora disse-me que com ténis era impossível aprender flamenco. Respondi-lhe que impossível era eu andar de saltos altos, quanto mais bailar! Olhou para mim com uma expressão, que hoje conheço bem, que queria dizer "É dar-lhe tempo!"... Na terceira aula lá estava eu de sapatos de baile flamenco, pretos, com elástico, de camurça, com pregos. E saltos...

Fui experimentar. Já gostava da música e o trabalho com a comunidade cigana tinha-me deixado curiosa. Há pouco tempo uma jornalista perguntava o que me tinha levado para aquelas aulas e eu respondi: "A inveja!". Estava a ser sincera...

Éramos no início um grupo de cerca de dez mulheres, idades diversas, profissões diferentes, percursos de vida distintos. Aquele era o nosso espaço pessoal. Um hobby. Arejar a cabeça...

Ao longo do tempo, estabeleceram-se afinidades, trocaram-se confidências, criaram-se laços, para lá do espaço das aulas. Levámos os filhos connosco e adaptámos o conceito: falamos de conciliação da vida familiar, profissional e artística.

Começámos a participar em espectáculos. No início, timidamente. Pela frequência dos mesmos, mas sobretudo pelo nervosinho no estômago antes de pisar o tablao. Hoje dizemos, meio a sério, meio a brincar, que já não temos aulas. Temos ensaios. E que passamos metade do ano em tournée. Aparecemos nos jornais, na televisão.

A partir do terceiro ou quarto espectáculo, a questão impôs-se. O nome do grupo? A Professora sugeriu "Las Araquerar", que significa "conversar" e se lê "ariquerare", uma dor de cabeça para quem tem de nos apresentar. Gostámos. Ficou. Mais tarde, fiquei a saber que a palavra terá menos o sentido de conversar, que o de falar... Pelos cotovelos! Assenta-nos. Às vezes, nas aulas, falamos mais do que bailamos!

Criámos uma identidade. Da relação professora-alunas, saltámos para uma dinâmica onde cada uma tem o seu papel. O alinhamento das músicas é negociado. As tarefas dividem-se na gestão da logística complexa dos espectáculos. Quem grava o CD? Quem leva os xailes? Quem tem o desmaquilhante?

Agora que releio o que escrevi, parece pretensioso, como se eu nos considerasse preparadas para bailar com o Joaquín Cortés. Bem... Agora que falo nisso... Porque não? Guapíssimas!!! ;)

Não, não é isso... Penso que nenhuma de nós terá imaginado que o resultado fosse este, naquele primeiro dia. Mas foi acontecendo. Temos uma professora cigana, que ensina payitas. E cada uma de nós terá, à sua maneira, consciência do impacto social deste facto. E pessoal (mas isto ficará para outra história).

O Diálogo Intercultural, que a União Europeia tanto se esforça por promover (será?), está ali. No partilhar de pedaços de vida, no escutar o que cada uma tem para dizer, no negociar o que queremos daquele espaço, no respeitar a essência de cada uma, no conversar... Araquerar!

O nervosinho no estômago? Esse mantém-se... Mucha mierda para nosotras!!!



domingo, 28 de setembro de 2008

Era uma vez...



"Tu devias contar essas histórias... Porque não fazes um blog?", dizia-me a Myrna depois de lhe ter contado a última aventura das Araquerar.

Essas histórias... Ela falava de dez anos de trabalho com a comunidade cigana, uma década de aprendizagens, cumplicidades, pequenas vitórias, algumas tristezas... De entregas, nem sempre muito bem compreendidas. Mas haverá outra maneira de conhecer o Outro, diferente de Nós?

Um caminho que se foi cruzando, aqui e ali, com o Flamenco. E há dois anos atrás, comecei a bater os pés neste outro caminho, o da dança. De tal forma me aconteceu, que hoje não sei onde começa um e acaba o outro. Assim é, o caminho da vida. Pachadrom...

Rejeitei a sugestão do blog de imediato, é claro! E os riscos? Mas a sementinha estava lá, a ideia germinou e tomou balanço. E no mesmo dia em que comprei um caderno para apontar ideias, porque como sabe quem me conhece, a primeira escrita é de papel e lápis, recebi pelo correio um Livro Branco, cuidadosamente decorado com imagens de bailaoras flamencas.

Interpretei o acontecimento como um sinal para seguir em frente. Defini regras na minha cabeça. Pesei prós e contras...

Ao longo destes anos tenho conhecido e convivido com ciganos, que moram em bairros sociais. E o que tenho observado, naquilo que os define enquanto Cultura, é terem em comum a pobreza e a exclusão social e cultural. E é com esses elementos que os caracterizamos, descaracterizando-os, alimentando estereótipos e preconceitos. Ou então, pegamos nas mesmas características e filtramos a expressão folclórica desta comunidade, pela música, pela festa, pelos usos e costumes, mais uma vez, alimentando preconceitos, estereótipos e voyeurismo.

Tenho também conhecido e convivido com ciganos, alguns vivendo em bairros sociais, que estudaram, têm uma profissão socialmente valorizada, descontam para os impostos, votam. Aparentemente incluídos. "Nem parecem ciganos!", ouço dizer muitas vezes. Mas são. Nem mais, nem menos, que os primeiros.

No fim de tudo, estamos a falar de Pessoas. Com mais de cinco séculos de História, difícil e sofrida. Com tradições, organização familiar, crenças, expectativas sobre a vida, estratégias de sobrevivência social, próprias e particulares. Como Nós. Pessoas.

Aprender a dançar Flamenco, com uma professora cigana, aproximou-me desta comunidade com a qual eu já me sentia em proximidade. Mas ganhei um novo estatuto. E assim, porque estou disponível para conhecê-los, eles estão disponíveis para se deixarem conhecer. E nesta troca, há mudanças, de uns e outros. E aumentamos...

Foi neste espírito de partilhar a ideia de que todos mudamos e crescemos, quando estamos disponíveis para conhecer o Outro, e de contar a forma como a mim me aconteceu, que avancei, segura de que não estou sozinha. Neste caminho nómada tenho encontrado Payos e Payas, com quem aprendi muito e com quem vivi estas experiências. Alguns serão "contados" nestas histórias. E outros haverá que não conheço. Ainda...

E assim foi... No dia 28 de Agosto, na praia, debaixo do chapéu de sol, coloquei o Livro Branco em cima da geleira, pedi emprestadas a lapiseira e a borracha, e na melhor das companhias nascia este "caderno de histórias". E se não servir para mais nada que desempoeirar os dossiers do Nómada, já terá servido para alguma coisa!

Contar histórias...

... "Porque mesmo que montes o cavalo ao contrário, ele continua a andar para a frente." (Provérbio Cigano)