quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A Brigada da Peuguinha


As ciganas são vaidosas. O flamenco faz bem à auto-estima. Ouço muito a primeira frase dita pelas próprias mulheres ciganas. A segunda é a minha Professora Sónia que diz. Também ela cigana. E vaidosa…

Dançar flamenco exige esforço, coordenação, sentido de equilíbrio, concentração. Lembro-me que após o aquecimento na minha primeira aula estava pronta para ir de férias para um qualquer resort. E que no final duvidava seriamente se teria aquilo que se designa por “esquema corporal” e “dominância lateral”, que se adquire pelos 4, 5 anos: esquerda, direita, esquerda, direita… Estas competências são trabalhadas em aulas de flamenco, mas também na natação, no futebol, na ginástica,…

Mas bailar flamenco é muito mais que aprender uma coreografia. Não se baila flamenco porque se contam passos, mesmo quando falamos de sevilhanas, que parecem ter uma estrutura mais aritmética. O flamenco é uma cultura e isto significa que é preciso interpretar, apreender, assimilar, viver, sentir. E, por isso, apesar de termos o mesmo tempo de aulas e de aprendermos as mesmas coreografias, eu nunca conseguirei dançar a “Sarandonga” para lá do mero contar de passos. E quando danço a “Paloma”, posso enganar-me em quase tudo e ainda assim corro o risco de ouvir a Fiona dizer-me “morre!”.

E temos a coordenação motora e o sentir a música. Mas para entender as minhas duas primeiras frases ainda falta explicar outra coisa. Mais complexa e mais demorada no tempo.

Bailamos em frente a um espelho. Os primeiros meses com os olhos cravados no chão. A vergonha de olharmos em frente, para nós próprias. A aceitação do que o espelho nos devolve chega devagarinho. E a imagem devolvida vai muito além da imagem física. A segurança naquilo que estamos a fazer, a expressão da nossa forma de pensar e viver o mundo. A expressão interior, a sensualidade. O nosso EU a aceitar-se, a ganhar confiança e a enfrentar novos desafios.

E depois começamos a bailar a pares. Gostamos de nós mesmas. E o Outro vai aceitar-nos como somos? Os olhos cravados no chão ou num braço ou no rodopiar de uma saia. Mais lentamente, a relação a construir-se, a harmonizarmos movimentos, a interpretar a música. Num mesmo sentir. A aceitação do Outro, porque o Outro também nos aceitou a Nós.

Os espectáculos. A sedução já não se dirige para uma imagem num espelho, não é um “namoro” com o par que está à nossa frente. É num palco. O público com os olhos cravados em nós. Nós com os olhos cravados no chão. E o medo de não gostarem de nós volta. O processo reinicia-se, como se estivéssemos em frente ao espelho. E devagarinho aceitamos o desafio: encantar o outro que não conhecemos.

E o processo de encantamento com o flamenco e com o nosso Eu, e a forma como vamos seduzindo o Outro e o Outro nos vai seduzindo a nós, a lembrar-me o caminho no qual nos deixamos envolver pelo Outro diferente de nós, de outra Cultura. Pela descoberta, pela aceitação da diferença, pela sedução, pelo prazer, pelo afecto. Mais uma vez.

E estes caminhos interiores que vamos percorrendo são, em primeiro lugar, visíveis por fora.

Todos os espectáculos das Araquerar têm a sua história, especialmente pelos momentos que se vivem nos camarins, antes da entrada no tablao. Mas há um momento clássico, que se repete em todos, que acontece quando a nossa Professora desespera connosco e grita num desabafo: “Eu não aguento! Eu vou desistir!!! Vocês dão cabo de mim!”.

Dizia isto nos primeiros espectáculos, porque resistíamos à maquilhagem, à saia garrida, ao cabelo apanhado e colado com gel. Disse-o quando num desses espectáculos, uma de nós resolveu levar pezinhos de mousse, em vez das collants de seda que brilham com as luzes do palco. E nesse dia o desabafo saiu-lhe mais dramático e em desesperança: “Isto parece a Brigada da Peuguinha!!!

E hoje repete o lamento porque as suas duas mãos não chegam para nos ajudar na maquilhagem, para agrafar a infinidade de ganchos e elásticos aos cabelos rebeldes… Porque naqueles momentos que antecedem a avaliação do nosso Eu pelos Outros anónimos, a esmagamos com mil e uma dúvidas sobre a imagem que vive no nosso espelho mental.

E a culpa é dela. E a Sónia sabe-o. Porque nos seduziu. Porque nos ampara a construção do EU. Que ainda não acabou. Porque ela diz muitas vezes que o flamenco faz bem à auto-estima.

E isto reflecte-se nos cabelos, que crescem até limites nunca antes vistos e que são quotidianamente penteados com os dedos, num gesto de auto-sedução. Os cabelos longos ou à “heavy metal”, teimosamente colados à cabeça com gel e ganchos, em dias de espectáculo.

E também nas orelhas que se furam para podermos usar argolas. Ou nos périplos que fazemos pelo Martim Moniz até encontrarmos os “castiçais” azuis turquesa, exactamente da cor da risca da saia. Ou nas unhas que antes só admitiam o verniz transparente ou branco, e agora sentimos as mãos despidas sem o “vermelho love”. E ainda nas calças de ganga, peça fundamental do guarda-roupa sem a qual não nos sentimos nós próprias, a ficarem esquecidas nos cabides e a serem substituídas pelas saias coloridas.

O flamenco faz bem à auto-estima e isso vê-se por fora. Mas sente-se por dentro. As ciganas são vaidosas… Difícil seria não o serem!


(Esta história é para as Araquerar. Pelo caminho percorrido. Pela vaidade de sermos NÓS! OLÉ!!! E fica aqui mais um desafio: que tal enviarem-me fotografias, para eu não ficar sozinha ali em cima? É que tenho vergonha, ainda...)

Edição Fotográfica: Cromo do Espaço (Gracías!)



4 comentários:

Anónimo disse...

Ah! Então está explicado porque é que eu só me sinto bem a dançar, soltando-me, sem preocupações com as coreografias, quando se trata de rumba cigana portuguesa – aquela que se ouve e se improvisa nos casamentos e nas festas - (assim o diz a Sónia, a nossa professora de flamenco).
Mas acho que uma coisa é gostar de se ver dançar ao espelho e outra é a falta de autoestima!
E eu considero que nunca tive falta de autoestima! (Os meus pais sempre me alimentaram a autoestima. Tive essa sorte).
Danço Samba, Marrabenta, etc.. sem preocupações com a coreografia e sem sentir que preciso de melhorar a performance se não for para o público e em palco!
Mas quando o nível de exigência se eleva porque já se tem algum conhecimento sobre o flamenco, é natural que sejamos autocríticos sobre o nosso desempenho, não?
Este medo do palco é o mesmo que senti quando, pela primeira vez, fiz uma comunicação sobre o vivido nos mercados, na rua, na ecoformação (no âmbito do Nómada)! Mas depois de muita “estrada” as comunicações saíam com emoção, inspiração, com duende, sem olhar para os apontamentos escritos nos powers points!
Então, acho que o mesmo deve acontecer quando se tiver tido muitos anos de flamenco (e oportunidades de treino, por exige esforço no aperfeiçoamento).
Enquanto que algumas de nós têm a possibilidade de serem professora e aluna ao mesmo tempo (ao ensinar aprende-se), outras só exercitam apenas no espaço das aulas, uma vez por semana. Por isso, umas fazem trabalho de casa e avançam mais rapidamente que outras; enquanto outras não os fazem e levarão mais tempo para deixarem sair o tal de salero! Isto se se tiver que interiorizar uma coreografia, porque se for apenas sentir a música, improvisando, a sensualidade brota e transpira de qualquer jeito,
Mas isso não tem a ver com falta de autoestima ou com falta de "vaidade"! Mal de nós se assim fosse!

Anónimo disse...

IsIr aprender a dançar sevilhanas era uma vontade velha. Quando via alguém dançar não conseguia deixar de me sentir encantada com o salero desta dança dos nossos vizinhos. Quando finalmente decidi, lá apareci na aula de saia aos folhos e sapatinhos com tacão como manda o figurino. Se a primeira aula sai de lá com a sensação que a coisa até se aprende, a partir da segunda, achei que jamais iria conseguir atinar com os pés, os braços e as mãos, quanto mais com o tal salero.
Se as sevilhanas parecem ser apenas uma questão de aprendizagem de uma sequência de passos, o flamenco exige muito mais de nós. Exige confiança para mostrar a nossa alma, o que sentimos quando ouvimos uma música…o flamenco é muito mais do que salero.
Nas aulas, começamos por fixar o olhar nos pés da professora. Depois nos nossos. Olhar para o espelho, para nós a bailar, é para mais tarde. Não sei se é por vergonha de não acertar no passo que nos sentimos mais inseguras e demoramos a olhar para o espelho, ou porque com o tempo nos esquecemos de nos seduzir a nós próprias.
Mas depois vem mais uma aula e mais uma e ganha-se confiança para Nos olhar a bailar ao espelho (muitas vezes com espírito critico porque a mão não está como devia, o braço na posição errada). Mas passo a passo ao som da ‘Paloma’ ou dos ‘Papeles Mojados’ desfrutamos do prazer de dançar, treinamos, insistimos até conseguir bater o pé no tempo certo.
Mas Las Arequerar são acima de tudo corajosas. Seis meses de aulas e não hesitaram em aceitar o desafio da professora para fazerem uma demonstração pública. Mãozinhas na cintura bailamos as sevilhanas, porque os braços ainda nos ‘baralhavam’ os paços. Os olhos postos de novo no chão face a uma plateia que nos olha.
Aceitou-se também o desafio de descobrir outros ‘Eus’. Os cabelos crescem e os rostos com maquilhagem ganham outra sedução. Os brincos querem-se grandes. Se no primeiro espectáculo eram quase todos discretos, nos seguintes começaram a ganhar dimensão. Coloridos, com tamanhos intermináveis e espampanantes, como à muito não usava. Os meus ‘castiçais’ voltaram a fazer parte de mim, a fazer parte do meu jogo de sedução. Olé!

La Payita disse...

Olé Guapa!!!

Não tenho nada a acrescentar, mas queria aproveitar a oportunidade para dizer que para algumas de nós a estreia em público foi mais cedo... Com três meses de aulas, na inauguração do Cd'Ca, para um Secretário de Estado. Jasussss!! Só sabíamos a primeira e segunda sevilhanas (e mal), de mãos na cintura, para não nos baralharmos e dançávamos uuma espécie de Camarón, a seguir a Sónia!!

E isso é preciso que se diga: Corajosas, nunca recusámos um desafio!!! Às vezes com uns nervos... Ayayayayayyyy... Mas sempre naquele espírito de estarmos a viver uma experiência única, irrepetível! Bora aproveitar!!! :D

E só mais uma coisinha... O nome do grupo é ARAQUERAR! Mas é como tu dizes, a nossa dinâmica é tal, que cada uma de nós o entende como quer! Ágrafas, também nós, ou não tivessemos uma professora cigana!!

OLÉEEEEEEE!!!!

Anónimo disse...

Bem, ler estas historias faz me sentir emoções muito fortes e recordar situaçoes unicas. Nunca mais seremos as mesmas depois destas experiencias. Dançar está nos sangue!!! Ali somos mesmo felizes, é o nosso mundo. Beijos para todas e tenho mtas saudades do palco :))