domingo, 2 de novembro de 2008

Ai, Portugal, Portugal...


“A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.”

Gabriel García Márquez


A Faculdade terminada. O canudo numa mão, o desemprego na outra. Nunca tive jeito para estar sossegada. Fui trabalhar voluntariamente para o Instituto de Apoio à Criança (IAC). Bairro da Ajuda, Lisboa. Num projecto que se chamava “Acções de ligação à comunidade”. Eu, mais uma vez a tropeçar no comunitário. Coincidências! Ou talvez não…

Estávamos em 1996. Em Lisboa conhecia as estações do Metro e pouco mais. Alcântara, a passagem pelo Casal Ventoso, visto cá de baixo, pela janela do autocarro. Aconteciam dias diferentes, quando tínhamos a companhia de “arrumadores” que viajavam até à Capital. Quarenta e cinco minutos num frenesim… A saída em Alcântara, a subirem a rua, rapidamente. À procura daquilo que lhes embalaria o resto do dia…

O Bairro da Ajuda. Missão: acompanhar os voluntários que faziam a animação dos recreios nas escolas do Bairro, sinalizar situações de absentismo e abandono escolares, construir pontes entre a família e as escolas.

O bairro social. As escolas. As ruas. As pessoas. Não sei se consigo recordar os nomes. Mas lembro-me dos cheiros, das cores. Dos professores, dos voluntários, das crianças. Do Centro de Saúde. Das pastelarias, das lojas de penhores. Das ruas a subir e a descer. Como se fosse hoje.

O bairro social. Caixotes brancos, de três andares, escadas estreitas, a roupa estendida na corda, os átrios ocupados com os restos da vida da qual não nos conseguimos separar: uma cadeira partida, a caixa de madeira da fruta, uma bicicleta sem rodas, o candeeiro de mesa sem abajour… Caixotes brancos, milimetricamente iguais, a dizerem-nos que a igualdade existe, na pobreza e na exclusão social… No meio dos prédios, as barracas: o “bairro” dos ciganos.

A escola. A partilhar o muro com as árvores de Monsanto. As crianças sujas, a brincarem à macaca e ao elástico. O sorriso rasgado na cara e o convite pronto para nos juntarmos à brincadeira. Do outro lado do muro, branco e pouco mais alto que eu, as mães encostadas a prostituírem-se, para que nesse dia a última refeição não fosse o leite distribuído na escola. Os preservativos e as seringas espalhados, num parque que deveria ser cenário de explorações e aventuras dos Robins dos Bosques de palmo e meio.

A outra escola. No Casalinho da Ajuda. Perdida num bairro de moradias, as cortinas de renda nas janelas, as loiças de feira a decorarem as entradas, o estuque a descoberto, os esgotos a céu aberto. Duas crianças no refeitório, a comerem sofregamente. Com as mãos. Como se o mundo fosse acabar já a seguir. Perguntei a uma professora porquê. Porque não utilizavam os talheres, colocados ao lado do prato de alumínio? Porque aquela era a primeira refeição do dia. E a única, provavelmente.

E uma rua. Algures por aqui. Casas baixinhas, coladas umas às outras, brancas e azuis. Porta sim, porta não, a tuberculose escondida lá dentro. À espera do próximo, insidiosa.

Um dia, a responsável pelo projecto diz-nos que temos de ir falar com uma família cigana porque uma das meninas estava a faltar à escola. Fiquei catatónica! Ciganos? Mas pode-se falar com eles???

Nunca tinha tido qualquer contacto com a comunidade cigana. Cresci na convicção de que os ciganos vivem num outro mundo, que não se cruza com o nosso. E quando tal acontece, nunca é por bons motivos. Ou é para nos roubarem ou para nos agredirem. De navalha na mão. Cresci a pensar que se visse um cigano, facilmente reconhecível porque anda sempre de preto e cheira mal, a primeira coisa que deveria fazer era atravessar para o outro lado da rua.

Não se julgue a minha família com muita severidade. E já aqui escrevi sobre ela. No que diz respeito aos preconceitos sobre ciganos, será como a maioria. Mas ensinou-me a pensar por mim, a questionar tudo, a enfrentar os desafios, a ir à descoberta. A não ter medo do diferente. A ser solidária. E isso fez a diferença!

A primeira vez. Os ciganos. Um bairro dentro de outro bairro. As barracas. Numeradas pelo Programa Especial de Realojamentos (PER). Um bairro à espera de um outro futuro: casas novas, num bairro de caixotes, milimetricamente iguais. Um bairro de barracas, ligadas umas às outras por passadeiras, construídas com tábuas de madeira. Os afectos ali, para quem os quisesse interpretar.

A família cigana. Da barraca nº44. A mesa de madeira e o homem da família a almoçar, sentado à mesa. Batatas com salsa e azeite. A mulher, em pé com o filho mais novo ao colo, um bebé de meses. A dar-lhe batatas com salsa e azeite. Nos olhos, a esperança. Na cara, os sorrisos rasgados. No discurso, o convite à conversa. A miúda, transgressora na escola? Doente. Amanhã voltaria. E voltou. Se porque melhorou, se porque nós visitámos a família, é coisa que nunca vou saber. Mas voltou.

E fiquei ali fascinada. Pelo acolhimento. Não tinha sido roubada nem esfaqueada. Uma família, preocupada com o futuro, os olhos cheios de esperança, num PER que havia de chegar. Um bebé a comer batatas com salsa e azeite. E nós a seguirmos rigorosamente as dietas prescritas pelos pediatras. O leite primeiro, a seguir o cerelac, as sopas… Só depois, muito depois, as batatas. E com salsa e azeite? Bem, o melhor é terem cartão de eleitor primeiro!!!

Mais tarde, pelo Nómada, havia de perceber que tudo isto são manifestações de pobreza. Mas naquele momento estava fascinada! Os ciganos eram completamente diferentes daquilo que eu tinha na cabeça! Desconstruir preconceitos. Foi o princípio de um caminho…

Quando penso nesta fase da minha vida, não consigo deixar de me lembrar d”Os Esteiros”, do Soeiro Pereira Gomes. Não sei porquê. Pelas crianças sem infância? Não sei… Terei de reler o livro. Mas àquela imagem de sofrimento e pobreza das famílias não ciganas, contrasta-me sempre a imagem de esperança e pobreza das famílias ciganas. Iguais na pobreza e na exclusão social.

Deixei o IAC no início de 1997, se a memória não me falha. Nunca mais voltei ao Bairro da Ajuda. Sei que as famílias do bairro de barracas foram realojadas em caixotes, prédios milimetricamente iguais.

Sei que foi construído um Pólo Universitário na Ajuda, para reabilitar a zona, mas que os transportes públicos circumnavegam o Bairro e que os estudantes são assim poupados à dor de terem de olhar de frente o País real.

Sei que o Casal Ventoso acabou. Agora o tráfico e o consumo de droga espalham-se por Lisboa. Pelo Bairro da Ajuda? Provavelmente. As meninas que conheci nos recreios prostituem-se no muro da escola? Para responderem ao frenesim que as invade diariamente? À procura daquilo que lhes embala o resto do dia? Para darem de comer aos filhos?

Quando fui para o IAC, o PER estava no seu início e davam-se os primeiros passos no Rendimento Mínimo Garantido (RMG). Concorde-se ou não com a medida, a verdade é que o RMG pôs a nu a pobreza e a miséria deste País à beira-mar plantado.

Trabalho em Setúbal, há dez anos, em contextos semelhantes. As barracas acabaram, ou são casos isolados. Só muito recentemente voltei a ouvir falar em situações de pobreza extrema. A economia global a reflectir-se. Os “ajustamentos” no RMG a reflectirem-se. Num País do Hemisfério Norte. Desenvolvido.

Passada uma década, continuo a ver professores, educadores, animadores, psicólogos, sociólogos, antropólogos, todas as expressões académicas na área social, a preocuparem-se, a denunciarem, a serem solidários. A resistirem… Um Olé com Duende para todos eles!!!!

E para todos aqueles “senhores” que enchem a boca a falar do “parasitismo social” que existe no nosso País: A fome existe! A tuberculose existe! A xenofobia e o racismo persistem! E pior que isso… A ignorância existe! Mas essa… É vossa!!!


(Esta história é para a Educadora Maria João Malho, responsável em 1996 pelas “Acções de ligação à comunidade” do IAC. Se algum dia ler isto, quero que saiba que aquilo que aprendi com ela ainda hoje está presente.)


Este é um Caderno de Histórias que entrecruza o Flamenco com a minha experiência com a comunidade cigana. As músicas "tocadas" aqui seriam, à partida, músicas flamencas. Mas hoje é só esta que me apetece ouvir…


http://www.imeem.com/people/vSU66r/music/wvAeIABq/jorge_palma_portugal_portugal/


Portugal, Portugal

Tiveste gente de muita coragem
E acreditaste na tua mensagem
Foste ganhando terreno
E foste perdendo a memória

Já tinhas meio mundo na mão
Quiseste impor a tua religião
E acabaste por perder a liberdade
A caminho da glória

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Tiveste muita carta para bater
Quem joga deve aprender a perder
Que a sorte nunca vem só
Quando bate à nossa porta

Esbanjaste muita vida nas apostas
E agora trazes o desgosto às costas
Não se pode estar direito
Quando se tem a espinha torta

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Fizeste cegos de quem olhos tinha
Quiseste pôr toda a gente na linha
Trocaste a alma e o coração
Pela ponta das tuas lanças

Difamaste quem verdades dizia
Confundiste amor com pornografia
E depois perdeste o gosto
De brincar com as tuas crianças

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar


8 comentários:

Anónimo disse...

Como têm sido as tuas estórias, lindas e emotivamente escritas, esta vem tocar-nos no fundo da nossa alma de cidadãos portugueses, europeus, e de "brandos costumes"... Mais uma vez, senti-me transportada aos lugares escondidos no nosso país, das nossas cidades, que teimosamente se insiste em esconder mas que resistem ao desenvolvimento, tal como os 8 objectivos do milénios o concebe...
Também fiz a minha primeira viagem ao centro do mundo cigano, nas então barracas que circundavam o Bairro da Bela Vista, e também me dei conta que a miséria não tem credo, nem raça, nem etnia...a miséria pode colar-se a todos, e seria pedagógico todos perceberem que ser-se cigano, negro, o que seja, não é sinónimo de ser-se pobre e miserável... Foi no bairro, mas também nas suas margens, que percebi que a "cultura de pobreza" se confunde com a cultura cigana muito abusiva e erradamente... A exclusão económica e social existe, claro, e empurram as pessoas para guetos onde, para se sentirem incluidas pela vizinhaça, adoptam as culturas localizadas; práticas sociais e culturais misicegenadas, hibridas, sempre em transmutação...Foi assim que o jazz e o flamenco se tornaram parte integrante da cultura dita elitista, da cultura da não pobreza, mas foi nesses lugares que aquelas musicas começaram... É sempre bom conhecer as nossas origens quando nos tornamos Outro, quando mudamos de lado da rua...Só sabendo de onde viemos é que saberemos para onde vamos...!

catizzz disse...

Bem... falaste da Minha cidade! E lembrei tanta coisa... Esses percursos também foram meus, faculdade em Alcantara, amigos a viver na Calçada da Ajuda e nessa altura o Casal Ventoso era a miséria exposta aos olhos de todos, como cartão de visita. Lá arranjaram forma de a esconder.. como se faz com quase tudo neste país. É como se estivéssemos constantemente a esconder o lixo debaixo do tapete... Desde que não se veja...
Acredito que algum dia as coisas vão mudar. Mas esse dia continua tão distante que às vezes me apetece desistir. Deste país.
Por enquanto vou ficando...

Anónimo disse...

«Não aceiteis o que é de
hábito como coisa natural,
pois em tempo de
desordem sangrenta, de
confusão organizada, de
arbitrariedade consciente,
de humanidade
desumanizada, nada deve
parecer natural, nada deve
parecer impossível de
mudar.»
Bertolt Brecht (1898-1956)

fumante disse...

Cada vez me sinto mais próximo das convicções e desconstruções que vou lendo (e relendo)neste teu blog.
Não me canso de algumas delas e esta, sem dúvida, é uma das que se adequam também à minha vivência.
Nos meus primeiros anos de trabalho na área social... foi descontrução atrás de desconstrução. Ainda hoje, desconstruo muitos preconceitos e ideias feitas.
Portugal...Portugal...Continuamos todos à espera. Mas quem cá está como tu e como alguns e algumas de nós vamos agindo, vamo-nos preocupando, vamos tentando fazer a diferença. Dar o nosso grito. O nosso alerta. Os "ouvidos moucos" continuam...à espera dos nosssos gritos e a fazê-los mudos.
Mas, "a luta continua!".
Obrigado La payita! Olé para ti!

Anónimo disse...

Talvez não tenha muito a ver, ou talvez tenha tudo. Mas não pude deixar de associar a este comentário e, sobretudo à letra do Jorge Palma, uma outra "letra" de Fernando Pessoa que aqui recordo.

NEVOEIRO

"Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!"
(Fernando Pessoa)

Esperemos que essa hora chegue em breve.

LB

Anónimo disse...

VOO NOCTURNO…
JORGE PALMA
“Encosta-te a mim…nós já vivemos 100.000 mil anos….chegada da guerra…faz de mim o teu herói…Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo…ENCOSTA-TE A MIM!!!!!!!!.”


Por outras bandas, não menos sombrias, por trilho sinuoso, escuros e frios, movida pela força do sonho, daquele que os anos vai apagando, ou pelo menos tornando-o mais distante, mais inatingível: Tornar o “o mundo melhor”.
A Missão: Ajudar os pseudo-delinquentes, os “grandes traficantes” a serem melhores. Estávamos naqueles anos em que o consumo ainda não tinha sido despenalizado, e por entre os corredores sóbrios, sujos e frios das cadeias portuguesas acumulavam-se corpos deitado nos corredores. Numa tentativa desatinada, e com o saudosíssimo de que já ”viveu 100.000 anos”, lá ia dando dicas clandestinas de como lavar seringas com lixívia, num grito de desespero de “droguem-se mas não se matem!”. Na década de 90, ainda não existia as pulseiras electrónicas, nem a tão badalada distribuição de seringas. Os reclusos, esses, muitos deles oriundos das barracas e dos emergentes novos bairros sociais, acumulavam-se nos corredores, aí vagueavam, comiam, dormiam e tratava da sua higiene. A luta entre reclusos, era muitas vezes feita, não pelo lugar ao sol, mas sim pelo direito a uma cela, a uma sanita. Era assim feita, em grande parte dos Estabelecimentos Prisionais, e ainda é, a reabilitação dos inadaptados da sociedade.
Houve alguém que um dia escreveu “ que as cadeias são o espelho da sociedade…”, daí que o retrato do país de ontem, muito se assemelha ao de hoje, principalmente no que é diz respeito à fome, à tuberculose, à SIDA, à xenofobia, ao racismo (embora o homem mais poderosos do mundo seja um afro descendente), essencialmente, à indiferença e à ignorância pelo sofrimento dos outros!
Encosta-te a mim!
Bc

La Payita disse...

E mais uma vez agradeço todos os comentários. Pelos motivos que já escrevi noutro sítio, mas neste caso particular (e porque esta história reflecte se calhar algum desalento, embora não tenha sido esse o objectivo) porque pelos comentários percebemos que não estamos sozinhos. Somos alguns. A gritar, a não aceitar o natural, a ficar por cá, a dizer "É a Hora!"

O testemunho espantoso deixado aqui sobre as prisões pôs-me a pensar nestas coisas... Nas solidariedades que se estabelecem entre nós, que vivemos "o outro lado da noite" (e o Jorge Palma, mais uma vez...)...

Quantos lados tem esta noite? E quando nasce o dia?

Aos "senhores que mandam no mundo": podem continuar a ignorar-nos, nós não vamos desistir... "Enquanto houver estrada pra andar, a gente vai continuar!" JP, mais uma vez.

Unknown disse...

Sem duvida não é o que vivemos, mas sim o que contamos e como contamos que nos aproxima da imortalidade.
As historias que não são esquecidas, mas também não são guardados dentro de nós e que vão passando de geração para geração.
Já em 1931 (tive de ir ver a data a net) Aldous Huxley escreveu um livro em que no futuro não havia vontade livre, eram tomadas doses regulares de felicidade e as ideologias eram administradas. Não havia lugar para questões, duvidas, conflitos e desejos. (Tenho de reler o livro )
Hoje esse futuro não esta tão distante assim as pessoas cada vez mais são maquinas comandadas, por um sistema por uma vida, onde não lhes e permitido sentir apenas por serem diferentes, por viverem de um modo diferente, por sentirem diferente, somente por sentirem. Este mundo tecnológico, não foi suficiente para combater preconceitos.
Hoje neste Mundo Novo, longe de ser Admirável, existem ainda pessoas que continuam a resistir a controlar as suas emoções e que continuam a contar historias para serem recordadas, que vão alem das suas vivências. Continuam a haver pessoas que dizem Encosta te a mim, a luta continua, é a hora, algum dia as coisas vão mudar....enfim enquanto houver pessoas assim...UPA UPA

Das Neves